A PEC dos Precatórios (23/2021), da maneira como foi aprovada na Câmara, institucionalizava um calote e desmoralizava um dos mais importantes instrumentos de ajuste fiscal aprovados no país, o teto de gastos. Como vários senadores deixaram muito clara sua insatisfação com o texto e o relator da PEC no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), admitiu a possibilidade de fazer alterações para diminuir as resistências, havia esperança de que houvesse melhorias; no entanto, o que ocorreu foi diametralmente oposto: agora, a PEC não agride apenas o teto de gastos, mas também quer ser o começo do fim da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Bezerra ignorou completamente sugestões como a do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), cuja proposta mantinha o pagamento integral dos precatórios, não alterava as regras do teto de gastos, e ainda assim encontrava recursos para bancar integralmente o Auxílio Brasil, principalmente ao colocar um fim na farra das emendas de relator. A ideia chegou a ser protocolada, tornando-se a PEC 41/2021. No relatório apresentado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado nesta quarta-feira, Bezerra entregou apenas um “boi de piranha” aos senadores descontentes, prevendo que toda a “folga” adicional no Orçamento de 2022 fosse destinada ao Auxílio Brasil e ao reajuste de despesas como o pagamento de aposentadorias; assim, não seria possível aproveitar a ocasião para aumentar o fundão eleitoral ou as emendas de relator, nem oferecer reajuste a servidores. Mas as gambiarras orçamentárias da versão aprovada na Câmara foram todas mantidas, adicionando-se o rombo no dique da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A partir de agora, sempre que for preciso encontrar espaço para uma nova despesa, basta alegar que ela é importante demais para ter de se submeter às regras de responsabilidade fiscal e mudar a Constituição
A mágica está em consagrar na Carta Magna o Auxílio Brasil como programa permanente, mas isentá-lo da obrigação, constante na LRF, de ter suas fontes de custeio devidamente descritas nas peças orçamentárias apresentadas anualmente: não seria mais necessário informar de onde viria o dinheiro, ou que despesa estaria sendo cortada para abrir espaço para o benefício. Bezerra se defendeu das críticas com um argumento extraordinariamente cínico: se a Constituição está acima do restante da legislação, e se a Constituição passa a dizer que o Auxílio Brasil não precisa cumprir as normas da Lei de Responsabilidade Fiscal, não há desrespeito à LRF. Um raciocínio circular que tenta escamotear o verdadeiro problema, agora ampliado.
Assim como um calote, ainda que oficializado em lei aprovada em parlamento e sancionada pelo presidente, continua sendo calote, o fato de não haver “desrespeito” à LRF porque a Constituição passará a dizer que o Auxílio Brasil não precisa respeitar a LRF em nada tranquiliza quem espera ver as contas públicas decentemente tratadas. Isso porque a manobra de Bezerra cria um precedente bastante preocupante: a partir de agora, sempre que for preciso encontrar espaço para uma nova despesa, basta alegar que ela é importante demais para ter de se submeter às regras de responsabilidade fiscal; com o apoio de 308 deputados e 49 senadores, institui-se mais uma exceção à regra, até que a regra fique completamente desmoralizada e inútil.
O Brasil construiu a muito custo um arcabouço legal para garantir a responsabilidade fiscal, e nem ele tem sido suficiente para conter impulsos gastadores de gestores nas três esferas de governo. E é especialmente frustrante perceber que este arcabouço está sendo erodido não por um governo de esquerda, adepto da elevação ampla, geral e irrestrita do gasto público, mas por um governo eleito com plataforma liberal, de redução do tamanho da máquina pública, e que chegou a prometer zerar o déficit primário no início do mandato – pois Bezerra, é preciso lembrar, além de relator da PEC dos Precatórios também é líder do governo no Senado. Por mais importante que seja a ajuda aos brasileiros mais vulneráveis, ela tem de ser bancada não com truques orçamentários e desmoralização da LRF, mas com os recursos que já existem, sem que seja preciso contornar nem o teto de gastos, nem a Lei de Responsabilidade Fiscal.