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Editorial

O golpismo de esquerda fracassa no Peru

Manifestantes contrários a Pedro Castillo nas ruas de Lima, após decisão do Congresso que reagiu a um autogolpe destituindo o presidente. (Foto: Aldair Mejía/EFE)

Durou pouquíssimas horas a aventura golpista de Pedro Castillo, agora ex-presidente do Peru, deposto pelo Congresso e preso pelo Exército após uma tentativa de autogolpe para escapar de um impeachment. Na manhã desta quarta-feira, dia marcado para o Legislativo peruano votar a cassação de Castillo, ele foi à televisão, anunciou a dissolução do Congresso unicameral do país, a convocação de novas eleições parlamentares e a redação de uma nova Constituição, uma “reorganização” do sistema judiciário e um toque de recolher que deveria durar das 22 horas de quarta-feira até as 4 horas da madrugada de quinta-feira. O Congresso desafiou a ordem de dissolução, cassou Castillo e deu posse à vice Dina Boluarte.

Apesar de ter posições mais conservadoras na pauta de costumes, Castillo se elegeu presidente em 2021 pelo Peru Livre, partido de extrema-esquerda membro do Foro de São Paulo – ele deixou a legenda por divergências internas em 2022. Com dificuldades para governar devido à oposição do Congresso, de maioria direitista, e encurralado por denúncias de corrupção, ele recorreu ao artigo 134 da Constituição peruana, que efetivamente permite ao presidente dissolver o Congresso, mas apenas “se este tiver censurado ou negado sua confiança a dois Conselhos de Ministros”. No entanto, isso ainda não tinha ocorrido: o Legislativo ainda não havia chegado a analisar a indicação de Betssy Chávez, investigada por tráfico de influência, como primeira-ministra, e havia controvérsia sobre o fato de já ter havido uma primeira moção de desconfiança contra algum dos outros quatro primeiros-ministros anteriores desde que Castillo assumiu a presidência.

O autogolpe frustrado de Pedro Castillo encerra uma carreira política marcada por uma boa dose de incompreensão a respeito do que realmente é a democracia

Para completar a lista de ilegalidades, a Constituição não faculta ao presidente nenhuma das outras medidas de exceção anunciadas por Castillo – o estado de emergência previsto no artigo 137, por exemplo, só pode ser decretado com a anuência do Conselho de Ministros, mas boa parte do gabinete se colocou contra o autogolpe, a ponto de vários ministros terem apresentado sua renúncia logo depois do anúncio presidencial. O paradoxo de “estabelecer um governo de exceção orientado a restabelecer o Estado de Direito e a democracia”, como afirmara o presidente na televisão, era tão evidente que, além do Congresso, dos membros do gabinete e até do advogado de Castillo, também o Judiciário e as Forças Armadas se recusaram a endossar o golpe.

Na ausência do requisito constitucional, tudo indica que o gatilho para o autogolpe realmente foi a iminência da votação do impeachment. Esta seria a terceira “moção de vacância” que Castillo enfrentaria, tendo escapado de outras duas porque a oposição não conseguira juntar os 87 votos necessários para tirá-lo do governo – apenas 46 e 55 deputados, de um total de 130, votaram pelo impeachment nas ocasiões anteriores. O desfecho poderia muito bem se repetir, mantendo o presidente no poder, mas Castillo não quis pagar para ver; sua atitude, no entanto, acabou sendo o impulso que faltava para que o Legislativo deixasse de apoiá-lo definitivamente: a cassação veio com 101 votos.

Termina assim, portanto, uma carreira política marcada por uma boa dose de incompreensão a respeito do que realmente é a democracia. É verdade que foi o voto popular que levou Castillo ao poder; mas, ao afirmar, durante o anúncio do autogolpe, que a oposição queria “dinamitar a democracia e ignorar o direito de escolha” dos peruanos, além de “aproveitar e tomar o poder que o povo retirou deles nas urnas”, o então presidente ignorava que aquele mesmo voto popular havia escolhido, no mesmo dia do primeiro turno da eleição presidencial, o parlamento que agora o contestava. Ainda durante a campanha Castillo afirmara que, se o Legislativo não endossasse seu programa de governo, ele haveria de fechar o Congresso mais cedo ou mais tarde, demonstrando aquela incapacidade de lidar com a divergência que é marca de muitos segmentos da esquerda latino-americana; que essa mentalidade tenha saído derrotada no Peru é uma vitória para a democracia na América Latina.

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