Em tumultuada sessão da semana que passou, o Senado Federal recusou-se a transformar em lei a Medida Provisória 387 instrumento pelo qual o governo pretendia criar 660 cargos de confiança e a Secretaria Especial de Projetos de Longo Prazo ironicamente apelidada de Sealopra , já entregue aos cuidados do neo-aliado Mangabeira Unger, indicado pelo PRB. A rejeição da MP traz transtornos para o presidente Lula, que agora busca articular uma nova fórmula para manter no governo o sociólogo brasileiro de carregado sotaque norte-americano que, não faz muito, havia pedido o impeachment do presidente por considerá-lo corrupto.
A derrubada de uma medida provisória pelo Congresso é fato raríssimo. Desta vez ela aconteceu graças aos votos de 12 dos 19 senadores do PMDB, que, aliando-se à bancada oposicionista, garantiram número suficiente para configurar a rejeição. Ficou parecendo um elogiável grito de independência do Legislativo e de coragem cívica e política de membros de um partido aliado e participante do governo Lula.
Mas não é exatamente o que parece. O jogo de cena dos peemedebistas que discursaram contra a aprovação da MP, alinhando até justos e aceitáveis argumentos técnicos, não foi suficiente para esconder os eternos e subalternos motivos que costumam inspirar episodicamente as manifestações de rebeldia no parlamento brasileiro. Na verdade, tratou-se de um ato de "vingança" de aliados insatisfeitos com suposto mau tratamento que lhes vem sendo dispensado pelo Palácio do Planalto.
Neste sentido, pois, a despeito do acertado resultado da votação, estivemos diante de uma atitude desprovida de virtudes cívicas e mantivemo-nos mergulhados naquele pantanal que justifica o conceito que a opinião pública devota à classe política, conforme comprovou, nesta mesma semana, a pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), segundo a qual 82% dos brasileiros dizem não confiar nos seus representantes políticos.
A hipocrisia que cercou a imposição desta derrota ao governo ficou devassada logo em seguida. O PT atribuiu-a a uma "rasteira" aplicada pelo senador Renan Calheiros que, depois de ser salvo da guilhotina pelos petistas, sente-se agora vítima desses mesmos parlamentares, que o querem fora da cadeira de presidente do Senado. Outros peemedebistas asseveram que a motivação que os levou a derrotar a MP encontra-se no não-atendimento, por parte do governo, de pedidos de nomeação de correligionários para altos cargos.
Em suma, verifica-se que a aprovação ou desaprovação de matérias obedece tão-somente a critérios de barganha ora por cargos, ora por liberação de recursos oriundos de emendas orçamentárias para atendimento a pleitos paroquiais de natureza eleitoral, quase nunca em razão do interesse público dos brasileiros.
Diante do perigo de que outras importantes matérias que tramitam no Congresso dentre as quais a que prevê a prorrogação da CPMF sucumbam também à rebelião deflagrada em sua base, o governo prepara-se para atender aos termos estabelecidos para a rendição. É do ministro das Relações Institucionais, Mares Guia, a incumbência de buscar superar as causas do conflito logicamente atendendo às miudezas exigidas pelos rebeldes, simplesmente uma versão menos agressiva do que foi o vergonhoso "mensalão".
É lamentável que as grandes decisões nacionais sejam tomadas sob tais perspectivas. São um demonstrativo de que ainda estamos longe de concretizar os princípios republicanos da convivência independente e harmônica dos Poderes. E de que estamos longe também de dar sentido puro ao conceito de democracia representativa aquele que nos assegura que os votos que depositamos nas urnas quando escolhemos nossos representantes devem ser obrigatoriamente reflexo do pensamento e do interesse da maioria.