Foi com perplexidade que o Brasil assistiu, na noite de terça-feira, a um pronunciamento de cinco minutos do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia de coronavírus, em que a mensagem principal foi uma conclamação à retomada do que chamou de “normalidade”. “Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição do transporte, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”, em referência aos inúmeros decretos país afora que impuseram restrições à atividade econômica como maneira de frear a curva de contágio da Covid-19. Várias das afirmações do presidente demonstram que, infelizmente – e apesar do desempenho elogiável do corpo técnico comandado pelo ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde –, Bolsonaro ainda não sabe com o que está lidando.
Ao dizer que “raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos de idade”, Bolsonaro insiste na taxa de mortalidade do coronavírus como fator predominante, quando já há demonstrações suficientes de que a ameaça da Covid-19 é outra. O que Bolsonaro diz sobre as mortes no grupo citado é verdadeiro, mas esta é apenas a metade mais inofensiva da história. Os casos graves, que exigem internação hospitalar, UTIs e respiradores, são de 10% a 20% do total. No entanto, como o coronavírus se espalha facilmente, na ausência de restrições ao convívio social o número de pessoas simultaneamente infectadas explodirá. O que parecia ser uma pequena porcentagem ganhará enormes dimensões em números absolutos, criando uma demanda por atendimento hospitalar que a rede atual não tem como suportar – se tivesse, não estaríamos em meio a uma corrida contra o tempo para montar hospitais de campanha e conseguir aparelhagem para atender os doentes. Ficariam sem atendimento tanto pacientes de Covid-19 em estado grave quanto todos os outros que necessitassem de uma UTI por qualquer outra circunstância, como outras doenças, acidentes ou agressões armadas.
O olhar para os efeitos econômicos do isolamento é não só legítimo como necessário, mas neste exato momento, no Brasil, não há a menor condição de “voltar à normalidade”
Acrescente-se, ainda, que o fato de que apenas os casos mais graves estavam sendo testados devido à baixa disponibilidade de kits para exame, combinado com outras características do coronavírus, aponta para um número real de infectados muito maior que aquele informado diariamente pelo Ministério da Saúde. Muitos portadores assintomáticos e aqueles que ainda manifestarão os sintomas não foram testados, e talvez nem o sejam no futuro próximo – apenas recentemente o governo conseguiu adquirir dezenas de milhões de exames. Colocar todas essas pessoas de volta nas ruas no curto prazo é a receita certa para ampliar o surto.
“Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado”, afirmou o presidente. O olhar para os efeitos econômicos do isolamento é não só legítimo como necessário, e há questionamentos pertinentes a respeito da necessidade de deixar em casa toda a população, com propostas de um escalonamento no retorno da população ao trabalho, sob certas condições. Mais cedo, nesta terça-feira, Mandetta havia dito que “esse travamento absoluto do país pra saúde é péssimo”. Mas essa não era, nem de longe, uma convocação ao retorno imediato dos brasileiros à vida pré-pandemia. O ministro afirmava, com razão, que há atividades essenciais que não podem parar nem mesmo durante uma situação como a atual, citando o atendimento médico a casos não relacionados com o coronavírus e a produção e o transporte dos produtos que ajudarão na prevenção e no combate à doença.
Sejamos francos: neste exato momento, no Brasil, não há a menor condição de “voltar à normalidade”, como pede Bolsonaro. Não sem ter a certeza de que o país terá leitos e respiradores para atender a todos os casos graves. Não sem ter testado parcela significativa da população para identificar quem tem o vírus. Afirmar isso não tem nada de histeria ou pânico; trata-se do mais puro bom senso, que faltou ao presidente naqueles cinco minutos na noite de terça-feira. A decisão sobre suspender a quarentena tem de levar em conta um balanço responsável e desapaixonado, feito com as melhores informações disponíveis a respeito tanto da evolução do surto quanto das perdas econômicas que começam a se acumular. É, sim, uma escolha política, em que será preciso colocar na balança todos os fatores e buscar a solução menos nociva. Mas, com seu discurso, Bolsonaro lançou paixão sobre uma decisão que deveria ser tomada de forma serena, e com isso prejudica toda a avaliação sobre possibilidade de retorno ao trabalho. Se mais adiante o Ministério da Saúde, por exemplo, se posicionar favorável ao relaxamento das restrições, quem poderá ter certeza de que o órgão está se pautando em avaliações técnicas, e não pelo mero desejo presidencial?
É incompreensível que Bolsonaro mantenha um discurso que desconhece a gravidade do problema (e, por desconhecer, a minimiza grotescamente): há semanas ele praticamente só vem lidando com este assunto; tem um ministro capacitado e que compreende bem o tipo de desafio que o país enfrenta; e viu a pandemia chegar bem perto, com a contaminação de boa parte da comitiva que o acompanhou aos Estados Unidos. É inaceitável que o presidente antagonize aqueles que deveriam ser seus parceiros na superação da crise, como governadores, prefeitos e imprensa.
Por que ele age dessa forma? Não queremos nem imaginar que ele esteja apenas se comportando como um jogador político, que sabe da necessidade do isolamento, sabe que governadores e prefeitos não relaxarão as medidas tão cedo, mas diz o que diz para poder se isentar de responsabilidade quando vierem o desemprego e a recessão, alegando que pediu a retomada imediata da atividade econômica, mas não foi ouvido. Seria um expediente abjeto: o líder da nação passa à população a mensagem errada sobre os riscos do coronavírus apenas para deixar nas costas de governadores e prefeitos a culpa da crise econômica que virá. A alternativa, no entanto, não é nada animadora, pois é a de um Bolsonaro que, neste momento, está cego à realidade; teríamos na Presidência da República alguém totalmente incapaz de lidar com uma crise que tirará mais vidas e empregos do que seriam perdidos se houvesse no comando alguém com os dois pés no chão. Sua equipe precisa chamar Bolsonaro à razão – se é que já não o vem fazendo – para salvar o esforço que a área técnica do governo vem realizando.