As cenas de destruição do 8 de janeiro, na Praça dos Três Poderes, chocaram os brasileiros, e com toda a razão. Elas merecem todo o repúdio, e precisam ser respondidas com firmeza, como afirmamos já na noite daquele domingo: a investigação tem de ser rigorosa, com a identificação e a devida punição de todos os envolvidos no quebra-quebra, dos que instigaram a revolta ainda que não tenham quebrado uma única vidraça, e dos que, pela omissão imprudente ou deliberada, permitiram que a invasão ocorresse graças a um esquema de segurança precário. No entanto, é preocupante ver que o Judiciário, a esquerda e seus aliados na opinião pública têm em mente algo que vai muito além disso: a criação de toda uma categoria de “culpados por associação” que tem tudo para culminar em uma verdadeira caça às bruxas.
Em vários despachos e decisões pós-8 de janeiro, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, tem usado o termo “terroristas” para designar não apenas os participantes do ataque à Praça dos Três Poderes, mas qualquer brasileiro que tenha estado nos acampamentos montados diante de quartéis em todo o país. Se já é bastante controversa a aplicação da palavra aos que invadiram o Planalto, o Congresso e o STF – ao menos do ponto de vista legal, pois a descrição feita na Lei Antiterrorismo não abrange o que ocorreu em 8 de janeiro –, mais temerário ainda é atribuir intenção ou modo de agir terrorista a quem nem esteve em Brasília no último domingo. Apesar disso, o termo disseminou-se amplamente pelas mídias sociais e pela imprensa, lançando um estigma sobre toda uma parcela de brasileiros que de terrorista não tem absolutamente nada.
Está se fomentando a perseguição ostensiva a qualquer coisa que remeta a “bolsonarismo” ou a qualquer pessoa que, em algum momento, tenha manifestado apoio ao ex-presidente ou a suas pautas, transformando tudo e todos em cúmplices do “terrorismo do 8 de janeiro”
Outra prova de que a reação ao 8 de janeiro não deve se limitar aos criminosos de fato é o discurso segundo o qual seria preciso também encontrar e responsabilizar também todos os que teriam ajudado a “criar o clima” que permitiu ou incentivou o ataque à Praça dos Três Poderes. Parlamentares estão sendo apontados como “defensores do terrorismo” ou “simpatizantes disfarçados”; se é verdade que houve quem até compartilhasse imagens da destruição, muitos outros estão sendo acusados por simplesmente limitar-se a descrever os motivos que levaram à indignação popular, como os inquéritos abusivos do Supremo. Mesmo assim, já existe pressão para que todos eles sejam cassados ou impedidos de tomar posse. Da mesma forma, um colunista de um renomado site de notícias sobre o Judiciário prega a responsabilização, ao menos no “plano moral”, de “juristas bolsonaristas” no “fomento a golpes”.
Esta responsabilização, no entanto, pode transbordar também para o plano legal: a Procuradoria-Geral da República já pediu ao STF a abertura de um inquérito para a investigação dos “autores intelectuais do terrorismo”. O conceito incluiria todos os que tenham feito críticas às urnas eletrônicas e “ataques” aos poderes da República. Como este último termo já foi indevidamente ampliado para que qualquer crítica legítima aos abusos cometidos pela suprema corte seja classificada como “ataque”, há uma grande possibilidade de que, caso a presidente do STF, Rosa Weber, aceite a abertura de inquérito, haja uma criminalização ampla, geral e irrestrita de qualquer um que, mesmo repudiando veementemente a violência como ferramenta política, tenha manifestado opinião crítica a Lula, ao Supremo, à inação do Senado em seu papel de contrapeso ao STF, ou feito análises com fundamentação técnica sobre possíveis fragilidades no sistema eletrônico de votação brasileiro.
O resultado disso será um macarthismo à brasileira: a perseguição ostensiva a qualquer coisa que seja classificada como “bolsonarismo” ou a qualquer pessoa que, em algum momento, tenha manifestado apoio ao ex-presidente ou a suas pautas, transformando tudo e todos em cúmplices do “terrorismo do 8 de janeiro”, assim como o macarthismo original transformara qualquer norte-americano com simpatias pela ideologia de esquerda em culpado de “atividades antiamericanas”, para usar o termo que deu nome ao comitê de investigação montado pela Câmara de Representantes dos EUA. E, como não há nada ruim que não possa piorar, o caso brasileiro ainda deve contar com o estímulo ao denuncismo ao estilo soviético, a julgar por reportagens que tratam positivamente pessoas que denunciaram parentes supostamente envolvidos no 8 de janeiro, mesmo sem a certeza absoluta de que eles participaram da invasão – o que traz à tona a imagem de Pavlik Morozov, o menino exaltado como exemplo nas escolas da União Soviética por ter denunciado o pai à polícia política, em 1932 (a veracidade da história, ou ao menos de partes dela, foi questionada após o fim da URSS).
- Luciano Trigo: Artigo 58
- O apagão da liberdade de expressão no Brasil (editorial de 30 de agosto de 2021)
- O desvario golpista e o direito à manifestação (editorial de 11 de janeiro de 2023)
- Alexandre de Moraes e o “guarda da esquina” (editorial de 17 de dezembro de 2022)
- O autoritarismo judicial da suspensão de perfis em mídias sociais (editorial de 22 de novembro de 2022)
Mas, se os Estados Unidos providenciam o mau exemplo, também oferecem a solução. Já na época do macarthismo, a Suprema Corte norte-americana agiu para conter vários excessos da campanha liderada pelo senador Joseph McCarthy, e defendeu os direitos políticos e de liberdade de expressão de vários americanos perseguidos por suposta simpatia pelo comunismo. O caso mais emblemático, no entanto, vem das investigações da invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Tanto na Justiça quanto na comissão criada pelo Congresso dos Estados Unidos, o foco tem se limitado ao ataque em si e aos seus instigadores imediatos; não há a intenção de acusar e punir “autores intelectuais” da invasão, muito menos de criminalizar o trumpismo e tratar como párias todos os norte-americanos que ainda apoiam Donald Trump, o Partido Republicano ou o seu ideário – ainda que essa tentação exista, como bem mostra a qualificação de “deploráveis” dada por Hillary Clinton aos eleitores de Trump em 2016. Tampouco se usou a invasão do Capitólio como pretexto para restringir liberdades como as de expressão e de reunião – nem pela via legislativa, nem pela via judicial, ao contrário do que vem ocorrendo no Brasil.
A principal democracia do mundo, portanto, mostra o rumo, amparada por séculos de tradição de respeito às liberdades e tendo passado pelo trauma de uma caça às bruxas poucas décadas atrás. Não somos obrigados a repetir o erro norte-americano para aprender a lidar com eventos como o 8 de janeiro. Sim, bem sabemos que o atual governo é guiado pelo desejo de controlar o discurso e eliminar da arena pública qualquer oposição; é de seu interesse associar o bolsonarismo e mesmo o conservadorismo à barbárie do 8 de janeiro para que seja mais fácil banir este discurso e promover os desejados “expurgos” na imprensa, no mundo do entretenimento, na política, nas igrejas, nas mídias sociais. Mas, se queremos pacificação verdadeira – que não é mero apaziguamento, e sim respeito autêntico às diferenças de opinião –, essa mistura tupiniquim do macarthismo americano com o denuncismo soviético precisa ser cortada pela raiz.