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Ultimamente, a expressão “puro suco de Brasil” tem se popularizado nas mídias sociais para descrever imagens ou episódios que, de alguma forma, refletem a essência do país. Pois uma sequência de acontecimentos nestes últimos dias poderia muito bem ser classificada como “puro suco de Brasil”, mas não naquilo que o país tem de pitoresco, ou de divertido – muito pelo contrário, mostram aquilo que temos de nefasto, a enorme degradação institucional que vivemos atualmente.
No fim de fevereiro, a esquerda deu sequência à sua perseguição contra parlamentares de oposição ao acionar a Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), pedindo investigação por crime de “lesa-pátria” e “conspiração contra o governo brasileiro com parlamentares dos Estados Unidos”, chegando a pedir a apreensão do passaporte do deputado, que era cotado para presidir a Comissão de Relações Exteriores da Câmara.
O “crime” de Eduardo Bolsonaro? Tentar chamar a atenção de autoridades norte-americanas para a deterioração das liberdades democráticas no Brasil, como a censura cada vez mais corriqueira, a abolição do devido processo legal nos processos do 8 de janeiro, e a violação frequente da imunidade parlamentar. A notícia-crime dizia que o deputado estaria “atentando contra os interesses nacionais”; mas que interesses são esses? Censura e perseguição judicial não são “interesses nacionais”, mas apenas de quem dá as cartas e se acha acima da Constituição; o genuíno interesse nacional é a restauração plena da democracia.
Qual foi o “crime” de Eduardo Bolsonaro? Tentar chamar a atenção de autoridades norte-americanas para a deterioração das liberdades democráticas no Brasil
Levar ao mundo um pedido de ajuda contra o que se considera arbítrio é prática totalmente legítima, amparada inclusive em tratados internacionais de direitos humanos; vítimas de regimes autoritários mundo afora sempre fizeram e continuam a fazer isso quando julgam que a pressão internacional pode contribuir para a normalização institucional de seus países. Chega a ser hipócrita a afirmação do petista Rogério Correia (PT-MG), para quem Eduardo Bolsonaro estava “desmoralizado a Justiça brasileira e o STF”, pois o próprio Lula já mandou seus advogados à Europa, em 2017, para conversar com parlamentares na Inglaterra e na Itália e desmerecer o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, que então julgava recursos de Lula contra suas condenações na primeira instância. Por fim, é importante destacar que, ainda que Eduardo Bolsonaro tivesse tido qualquer papel de articulação ou sugestão nas iniciativas norte-americanas de sancionar os liberticidas brasileiros, não há nenhuma medida em análise que puna o Estado brasileiro, mas apenas indivíduos específicos.
PGR e STF jogaram com a denúncia-crime como uma espada de Dâmocles pendendo sobre a cabeça do deputado. Em 1.º de março, o ministro Alexandre de Moraes pediu um parecer à PGR, que não cumpriu o prazo de cinco dias. Enquanto isso, informações de bastidores davam conta de que o STF estaria trabalhando contra a indicação de Eduardo Bolsonaro à presidência da Comissão de Relações Exteriores. Como qualquer brasileiro familiarizado com os acontecimentos recentes sabia muito bem que a possibilidade de a notícia-crime virar denúncia e de o deputado perder sua liberdade de viajar ao exterior era muito real, Eduardo Bolsonaro se antecipou: no dia 18, anunciou que se licenciaria do cargo temporariamente para ficar nos EUA. Horas depois, a PGR enviou seu parecer, contrário à apreensão do passaporte, e Moraes arquivou o pedido dos petistas.
A situação atual do país torna muito razoável questionar se o desfecho da notícia-crime teria sido o mesmo se o deputado não tivesse manifestado a intenção de se afastar. A esse respeito, o caso de Eduardo Bolsonaro se assemelha muito ao do presidente eleito da Venezuela, Edmundo González, que se exilou na Espanha diante da possibilidade de ser preso pela ditadura de Nicolás Maduro. Ato contínuo, o procurador-geral chavista encerrou as investigações contra o ex-embaixador que derrotara o ditador na eleição de julho de 2024, indicando que a ordem de prisão emitida contra González tinha o objetivo único de forçar sua saída do país.
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Na noite do mesmo dia 18, Moraes também foi o anfitrião de um jantar que reuniu oito dos 11 ministros do Supremo; o procurador-geral Paulo Gonet; o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin; e os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). O convescote, por si só, já bastante escandaloso, ao reunir, por exemplo, acusador e julgador às vésperas da análise da denúncia oferecida pelo PGR contra Jair Bolsonaro e outras pessoas pela suposta tentativa de golpe de Estado; ou, ainda, por reunir em um ambiente informal, não institucional e privado, magistrados da suprema corte e os chefes das casas do Legislativo nacional. Mas foi o pós-jantar – que, segundo informações de bastidores, incluiu piadas com o caso de Eduardo Bolsonaro – que trouxe uma reviravolta surreal.
Na sessão solene da Câmara que comemorou os 40 anos da redemocratização, Hugo Motta afirmou que, “nos últimos 40 anos, não vivemos mais as mazelas do período em que o Brasil não era democrático. Não tivemos jornais censurados, nem vozes caladas à força. Não tivemos perseguições políticas, nem presos ou exilados políticos. Não tivemos crimes de opinião ou usurpação de garantias constitucionais. Não mais, nunca mais”. Esta não é apenas uma afirmação totalmente descolada da realidade, onde há muita censura, crimes de opinião e supressão de liberdades democráticas; é também uma mudança de 180 graus para quem havia dito que o 8 de janeiro não havia sido uma tentativa de golpe, e que criticou as penas exageradas aos réus condenados pela depredação na Praça dos Três Poderes. Mas é uma reversão inexplicável só na aparência, pois a explicação certamente reside naquele jantar de 18 de março, no apartamento daquele que é, hoje, a pessoa mais poderosa do país, o censor-mor da República.
Partidos políticos e o sistema persecutório unidos em perseguição política contra opositores, forçados a abrir mão de muita coisa para não terem algum direito cassado arbitrariamente; uma proximidade muito além do desejável entre ministros do STF e presidentes das casas do Congresso; uma mudança súbita e radical no discurso de um desses presidentes, para alinhar-se à narrativa defendida por governo e Supremo. Eis o “puro suco de Brasil” – e, para fazê-lo, ninguém hesita um minuto sequer em espremer as liberdades e garantias democráticas, ou adversários políticos, ou mesmo centenas de cidadãos comuns, até que não sobre deles nem mesmo o bagaço.