Quando, em várias outras ocasiões, afirmamos que existe um déficit de cultura democrática no Brasil, essa deficiência se revela em várias circunstâncias: a desconfiança generalizada nos outros, que atrapalha o associativismo; a permissividade em relação ao uso da força para impor ideias, ainda que consideradas nobres, como ocorre em casos de invasão de escolas e prédios públicos; e o desconhecimento sobre a função das instituições e do papel das leis, especialmente da Constituição, na construção da democracia. Este último aspecto, em específico, ficou evidente em um episódio recente.
No dia 19, a Procuradoria-Geral da República lançou nota intitulada “PGR cumpre com seus deveres constitucionais em meio à pandemia”, descrevendo a atuação do órgão em questões ligadas ao combate à Covid-19. Para além das leituras possíveis do texto – autopromoção, legítima prestação de contas ou mera afirmação de que a PGR está, no fim das contas, fazendo o que deveria fazer –, salta aos olhos uma afirmação extremamente preocupante, a de que “o estado de calamidade pública é a antessala do estado de defesa”. É de se questionar como o redator da nota (e, por extensão, o procurador-geral Augusto Aras) conseguiu unir dois temas tão diferentes, ainda mais insinuando que estaríamos às portas de uma situação de exceção.
O estado de defesa é uma situação de exceção, sumamente grave, que resulta na supressão de direitos básicos do cidadão e que só se deve aplicar em último caso; insinuar que estamos na “antessala” de algo assim é um desserviço
O estado de calamidade pública é uma providência prevista no artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, e cujos efeitos são fiscais, afetando, por exemplo, limites de gastos ou contratação de crédito. Foi graças ao estado de calamidade pública relacionado à pandemia, reconhecido pelo Congresso em março do ano passado, que governo federal, estados e prefeituras ganharam permissão para gastar acima do teto permitido pela legislação. Já o estado de defesa, descrito no artigo 136 da Constituição, é de natureza completamente diferente, permitindo até mesmo restrições aos direitos fundamentais, como o de reunião e os sigilos telefônico e postal. Ele existe “para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social” que estejam “ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”.
Apenas um malabarismo retórico impressionante (ou uma igualmente impressionante deficiência na interpretação de textos legais) permitiria ler na Constituição a referência a “calamidades de grandes proporções na natureza”, associá-la à “calamidade pública” da Lei de Responsabilidade Fiscal e ver nela o pretexto para a decretação de estado de defesa. Este só poderia ser invocado em caso de calamidade natural se houvesse grave ameaça à “ordem pública ou a paz social”; um exemplo seria um caos anárquico que se seguisse a um evento natural catastrófico, com saques e violência generalizada. Isso não tem relação alguma com qualquer situação que tenha sido causada pela Covid-19.
Tampouco há “grave e iminente instabilidade institucional” ameaçando a ordem pública e a paz social, a outra razão para se invocar o estado de defesa. Sim, há quem considere que autoridades têm demonstrado incompetência crônica na condução do combate à pandemia. Há um acirramento da polarização política, há dezenas de pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, há trocas de farpas entre chefes de poderes. Mas tudo isso, por mais lamentável que seja, é parte do jogo democrático e está longe de constituir a instabilidade “grave e iminente” de que trata a Constituição; não temos golpes de Estado em curso, nem poderes acéfalos, nem tipo algum de caos institucional. A própria nota da PGR o reconhece ao dizer que “as instituições estão funcionando regularmente em meio a uma pandemia que assombra a comunidade planetária”.
Esta alusão totalmente gratuita ao estado de defesa em nada contribui para a sua compreensão correta: é uma situação de exceção, sumamente grave, que resulta na supressão de direitos básicos do cidadão e que só se deve aplicar em último caso. A nota da PGR faz pouco desse fato ao dizer que estamos na “antessala” de algo dessa gravidade, servindo apenas para atiçar os ânimos dos autoritários de plantão, como aqueles que se baseiam em leituras equivocadas do artigo 142 da Constituição para pedir golpes eufemisticamente chamados de “intervenção militar”.
O Brasil percorreu um longo caminho para restaurar sua democracia e deixar para trás os tempos de exceção. Mas este não é um trabalho acabado; está apenas no início e exige a “eterna vigilância” da frase erroneamente atribuída a Thomas Jefferson. Precisamos, sempre, de mais democracia, e em nada ajudam menções ligeiras a novas ocasiões de supressão de direitos, quando estamos muito longe de qualquer situação que exija medidas extremas.