Uma nova frente de batalha em defesa da vida se abriu no Congresso Nacional em torno dos abortos tardios, aqueles feitos depois que o bebê atingiu a chamada “viabilidade fetal”, em que passa a ter chances de sobrevivência fora do útero materno – o que acontece por volta das 22 semanas de gestação. Um projeto de lei pretende alterar a pena para o crime de aborto nesses casos, que atualmente é de até quatro anos, equiparando-o ao homicídio simples, cuja pena pode ser de até 20 anos de prisão. Além disso, tais penas seriam aplicadas também nos casos aos quais o Código Penal não prevê punição atualmente – risco de vida para a mãe e gestação resultante de estupro; o STF acrescentou, em 2012, o caso de bebê com anencefalia. O PL 1.904/24 tramita em caráter de urgência, ou seja, pode ir diretamente a plenário sem passar pelas comissões da Câmara dos Deputados.
Toda a controvérsia teve início com o empenho do governo Lula em derrubar normativas anteriores – e que vinham ao menos desde o governo Dilma Rousseff – que recomendavam, nos casos de gestações que já haviam atingido 22 semanas, não o aborto, mas a antecipação do parto, com a oferta de todos os cuidados possíveis ao bebê prematuro e sua posterior entrega para adoção caso ele sobrevivesse. Uma nota técnica do Ministério da Saúde reforçando o “direito” ao aborto tardio chegou a ser publicada em fevereiro de 2024, e revogada no dia seguinte após a enorme repercussão negativa. Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou resolução proibindo o uso da assistolia fetal – método pelo qual o bebê é morto com uma injeção que provoca parada cardíaca – após a 22.ª semana de gestação; a esquerda abortista, então, buscou o Supremo Tribunal Federal, e liminar do ministro Alexandre de Moraes suspendeu a resolução. É neste contexto que o PL 1.904 foi proposto.
A equiparação do aborto tardio ao homicídio simples ressalta o horror da opção deliberada por matar um inocente que poderia ter a chance de viver, sem nenhum motivo plausível que possa justificar tal escolha
A questão que se impõe logo de imediato é: tal equiparação faz sentido? Para isso, é preciso entender o que está em jogo. Falamos, aqui, de um ser humano, indefeso e inocente, que já chegou a um estágio de desenvolvimento fetal que lhe dá ao menos uma chance de sobreviver fora do útero materno. A escolha, neste caso, está entre dar à criança esta possibilidade – se ela efetivamente sobreviverá é algo que depende de muitos fatores –, ou eliminá-la ainda no ventre da mãe sem nenhum outro motivo que não seja o mero desejo de matar. A gestação será encerrada de uma forma ou de outra, com a antecipação do parto ou com o aborto; a mãe não tem obrigação de ficar com o bebê, podendo encaminhá-lo para adoção – uma decisão compreensível especialmente no caso de gravidez resultante de violência sexual. Nessas circunstâncias, a escolha deliberada pela eliminação da criança viável fora do útero é barbárie pura e simples, como aliás a Gazeta do Povo já afirmou em outras ocasiões.
Faz sentido, portanto, a equiparação proposta pelo PL 1.904 – inclusive nos casos para os quais o Código Penal não prevê punição. Esta decisão do legislador de décadas atrás tinha o mérito de reconhecer o sofrimento da mãe que passa por tais situações e a quem se acrescenta o trauma de eliminar o próprio filho. No entanto, os casos do aborto tardio, passado o limiar da viabilidade fetal, acrescentam um novo dilema moral, e a equiparação ao homicídio simples vem para ressaltar o horror da opção deliberada por matar um inocente que poderia ter a chance de viver, sem nenhum motivo plausível que possa justificar tal escolha.
Destaque-se, aliás, que o PL 1.904 preserva o espírito que guiou os elaboradores do Código Penal ao afirmar que o juiz poderá reduzir ou até anular a pena da mãe, “se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária” – uma concessão que o artigo 121, parágrafo 5.º do Código Penal já faz aos casos de homicídio culposo (sem a intenção de matar), mas não ao homicídio doloso, ou seja: a mãe que aborta intencionalmente ainda terá uma possibilidade que não é dada a quem mata outra pessoa deliberadamente.
Apesar disso tudo, a militância pró-aborto tem se oposto veementemente ao PL 1.904 com uma série de falácias, como aquela segundo a qual a equiparação de penas entre aborto tardio e homicídio representaria uma “minimização” do crime de estupro, punido com até dez anos de prisão. Ironicamente – ou, melhor dizendo, hipocritamente –, é justamente essa militância que vem resistindo a qualquer medida recente que pretenda ajudar na investigação, captura e responsabilização de estupradores. Desde a obrigatoriedade de notificação às autoridades policiais caso uma gestante solicite um aborto alegando ter engravidado como resultado de violência sexual, até a previsão de coleta de material genético do feto abortado para fins de testes que possam confirmar ou desmentir suspeitas sobre a identidade do estuprador, a esquerda fez tudo o que esteve a seu alcance para obstruir ou revogar tais procedimentos. Não são os pró-vida, portanto, que minimizam a gravidade do estupro, mas aqueles que resistem a dificultar a vida dos violadores.
Tampouco se pode dizer que a equiparação ao homicídio, ao valer apenas para as crianças com 22 semanas ou mais de gestação, desvaloriza a vida dos fetos que ainda não chegaram a essa idade gestacional. Toda vida humana é digna de proteção desde a concepção, e a lei penal, mesmo com a alteração do PL 1.904, não deixa de garantir essa proteção; trata-se, única e exclusivamente, de explicitar a barbárie do aborto tardio, em que se mata uma criança sem motivo algum, negando-lhe uma chance de sobrevivência que ela poderia ter. A ninguém ocorre afirmar que a vida de quem é morto de forma não intencional vale menos que a de quem é morto intencionalmente, já que as penas para homicídio doloso são maiores que as do homicídio culposo e da lesão corporal seguida de morte; da mesma forma, afirmar que o PL 1.904 divide os nascituros em “mais dignos” ou “menos dignos” de acordo com idade gestacional por impor penas diferentes ao aborto não faz o menor sentido.
O objetivo sempre foi, é e continuará sendo o de salvar as duas vidas: a da mãe e a do bebê, independentemente da sua idade gestacional. O PL 1.904 está de acordo com esse objetivo
Uma crítica mais razoável é feita não ao mérito do PL, mas à forma como ele está tramitando. O regime de urgência, alega-se, dificultaria um debate mais prolongado e robusto sobre o assunto, e o argumento faz sentido. O lado pró-vida é o principal interessado em uma discussão séria sobre o aborto: sobre o que ele é, sobre o que representa. Seria excelente que todo o país tivesse a ocasião de saber em detalhes como é um bebê de 22 semanas, e como se mata esse bebê com uma injeção no coração para que tenha uma parada cardíaca e possa ser retirado, morto, do ventre da mãe. Seria ótimo que os brasileiros soubessem que isso traz mais risco à mãe que uma antecipação de parto, como atestam médicos que já trabalharam na indústria do aborto nos Estados Unidos. O regime de urgência, no entanto, não impede que esse trabalho fundamental de conscientização continue a ser feito.
Além disso, há razões suficientes para acreditar também que as informações sobre a real natureza do aborto seriam abafadas pelos setores da “opinião publicada” para os quais a posição pró-vida é intrinsecamente absurda e por isso não merece carta de cidadania. Muito mais provável seria que uma tramitação lenta apenas permitisse a perpetuação das falácias e dos discursos preconceituosos que temos presenciado desde o surgimento do PL 1.904, e que vêm do mesmo lado que não hesita em usar atalhos institucionais quando se trata de defender o abortismo, como se viu pelos inúmeros recursos apresentados ao STF sempre que o Congresso ou o governo anterior tomavam alguma decisão em benefício do nascituro.
O objetivo sempre foi, é e continuará sendo o de salvar as duas vidas: a da mãe e a do bebê, independentemente da sua idade gestacional. O PL 1.904 está de acordo com esse objetivo, ao colocar o peso da lei em favor das chances de sobrevivência dos bebês que chegaram à viabilidade fetal, bem como ao privilegiar o procedimento médico que traz menos risco para a mãe – no caso, a antecipação do parto, em vez do aborto. Não levá-lo adiante – com ou sem regime de urgência – seria desperdiçar uma enorme chance de avançar na proteção de mulheres e nascituros.