Com tantas prioridades no Congresso Nacional – projetos que colaborem no combate à pandemia de Covid-19, acelerem a vacinação, reformas como a tributária e a administrativa, marcos legais que destravem investimentos, privatizações, ampliação da liberdade econômica, a prisão após condenação em segunda instância e outras leis para aprimorar o combate à corrupção –, há deputados com a ideia fixa de liberar o plantio da maconha no Brasil. Na próxima segunda-feira, uma comissão especial na Câmara pode votar o substitutivo de Luciano Ducci (PSB-PR) ao Projeto de Lei 399/2015.
Em sua formulação original, de autoria do deputado Fábio Mitidieri (PSD-ES), o PL 399 pretendia apenas alterar um artigo da Lei de Drogas para permitir a comercialização de medicamentos com substâncias derivadas da Cannabis sativa. Nas mãos do relator, o texto se transformou em algo muito mais amplo – a mudança mais radical foi a permissão para o plantio da Cannabis em todo o território nacional, desde que por pessoa jurídica, mas ainda há uma série de outros dispositivos que têm o objetivo de estabelecer regras para o uso medicinal de substâncias derivadas da planta.
Todas as brechas do projeto que permitiam o uso indevido da Cannabis permanecem na versão mais atualizada do substitutivo
“Em nenhum momento a gente discutiu legalização da maconha para uso adulto ou individual”, afirmou Ducci em reunião da comissão especial na última terça-feira, em resposta a argumentos de parlamentares críticos ao projeto. De fato, não há previsão explícita neste sentido, mas o problema não é este. A minuta de substitutivo que havia vindo à luz em setembro do ano passado, quando houve a primeira tentativa de fazer andar o PL 399, contém algumas brechas que poderiam, sim, permitir o uso indevido da Cannabis. E, apesar de todas as emendas apresentadas ao projeto mais recentemente, todas essas brechas permanecem na versão mais atualizada do substitutivo.
É o caso, por exemplo, da permissão, no artigo 18, para que se receitem “formulações com níveis de Δ9 –THC [tetrahidrocanabidiol, o principal componente entorpecente da maconha] superiores a 0,3%”, consideradas “psicoativas”; este trecho é precedido pela afirmação, no mesmo artigo, de que “não haverá restrição quanto aos critérios terapêuticos para a prescrição de medicamentos ou de produtos de Cannabis medicinal de uso humano ou veterinário, desde que seja feita por profissional legalmente habilitado” e tal prescrição seja feita “com anuência do paciente ou do seu responsável legal”. São textos que podem ser explorados por usuários e profissionais mal-intencionados para proporcionar o uso recreativo da Cannabis sob o disfarce de uma prescrição médica.
Ainda que não houvesse tais trechos problemáticos no substitutivo, a própria possibilidade de se permitir o cultivo em larga escala da Cannabis no país – inclusive de “plantas de Cannabis medicinal psicoativas, aquelas com teor de Δ9 –THC superior a 1%” – já deveria causar preocupação suficiente. Ironicamente, o relator parece saber dos riscos envolvidos, pois os “maconhais legalizados” deverão estar cercados de cuidados dignos de penitenciárias de segurança máxima, descritos no artigo 6.º: “perímetro protegido, de forma a impedir o acesso a pessoas não autorizadas”; “sistema de videomonitoramento em todos os pontos de entrada, com restrição de acesso e sistema de alarme de segurança”; e “tela alambrado de aço galvanizado ou de muros de alvenaria, ambos com no mínimo dois metros de altura e providos de cercas elétricas com tensão suficiente para impedir a invasão de pessoas não autorizadas”. Por fim, o local de cultivo não pode ser “ostensivamente identificado com o nome fantasia, razão social ou qualquer outra denominação que viabilize a identificação das atividades ali desenvolvidas”. Não à toa a Anvisa recusou a possibilidade de cultivo da Cannabis no Brasil em 2019 alegando justamente questões de segurança, pois há ameaças que, bem sabemos, são muito mais poderosas que as precauções elencadas no substitutivo.
Desde que o PL 399 foi proposto, a Anvisa aprovou várias medidas que facilitam o acesso a produtos à base de canabidiol, o componente da planta que, devidamente manipulado, tem uso farmacêutico. Se tais providências não bastaram para ampliar este acesso, como alegam os defensores do PL 399 e entidades de apoio a pacientes que fazem uso do canabidiol, é esta frente que precisa ser atacada, de forma a baratear os medicamentos e insumos que se revelarem essenciais. Da forma como está atualmente redigido, no entanto, o PL 399 vai muito além deste objetivo. Pode não ser o “marco legal da maconha”, como afirmou na terça-feira o deputado Osmar Terra (MDB-RS), mas já é suficientemente perigoso e permissivo para fazer de sua aprovação um enorme risco para o país.
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