O Brasil se encontra perplexo diante da operação que prendeu quatro militares do Exército – um general, um tenente-coronel e dois majores – e um policial federal, acusados de planejar o assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro do STF Alexandre de Moraes; o crime seria executado ainda em dezembro de 2022, antes da posse. Segundo a Polícia Federal, os conspiradores usariam armamento pesado e consideravam a possibilidade de envenenar Lula, e ainda haveria um plano para estabelecer um “gabinete institucional de gestão de crise” com o objetivo de administrar a eventual convulsão social decorrente dos assassinatos.
O que se sabe até o momento, com os relatórios da Polícia Federal e a ordem de prisão dos suspeitos, já é suficiente para que condenemos veementemente a trama que vem sendo investigada. A se confirmarem as suspeitas apresentadas, estaremos talvez diante do mais tresloucado e grave episódio da história nacional recente. É simplesmente inadmissível que se cogitasse algo tão extremo quanto a eliminação de adversários políticos, inclusive com a participação de militares do mais alto escalão, alguns deles com passagem pelo governo federal. Não há “gabinete de gestão de crise” capaz de negar a gravidade do que foi planejado, nem de conter o caos que teria se instalado caso a vil conspiração tivesse sido bem-sucedida.
É ilação pura e simples afirmar categoricamente, como têm feito autoridades – ligadas ou não às investigações – e formadores de opinião, que absolutamente todos os episódios, do 8 de janeiro ao suposto plano homicida dos “kids pretos”, passando pelas “pipe bombs” de Francisco Luiz, fazem parte de uma única e enorme conspiração
O nosso repúdio incondicional a qualquer tentativa de uso da força – especialmente do assassinato – para fazer privilegiar uma convicção ou postura política, no entanto, não nos impede de alertar para um perigosíssimo desdobramento do que foi veiculado, desdobramento este que já vinha sendo colocado em prática desde a última quinta-feira, quando Francisco Wanderley Luiz se matou após atirar alguns explosivos na direção da sede do STF. Referimo-nos à exploração desses episódios para construir uma narrativa que justifique todos os abusos cometidos até o momento pela Procuradoria-Geral da República e pelo Supremo contra um sem-número de brasileiros, ou mesmo a institucionalização de tais abusos por meio de ações como uma nova regulamentação das redes sociais a ser feita pelo STF, com mais restrições indevidas ao funcionamento das plataformas de internet no país.
Seria de uma ingenuidade completa acreditar que, entre a multidão de cidadãos descontentes com a vitória do petista em 2022, não houvesse verdadeiros loucos, dispostos a ir às últimas consequências – como o caso de um assassinato – para impedir que Lula tomasse posse ou governasse. Também não descartamos que alguns desses loucos estivessem nos altos círculos do poder federal e militar. Por outro lado, o fato de não ter havido nem golpe de Estado, nem assassinato de autoridades, também demonstra que os loucos – inclusive os loucos em posição de comando – são minoria, sem o poder que lhes vem sendo atribuído; e que a maioria, mesmo profundamente indignada, tem compromisso democrático. Em outras palavras, não se pode supervalorizar a loucura.
Com isso em mente, podemos afirmar com toda a certeza que é ilação pura e simples afirmar categoricamente, como têm feito autoridades – ligadas ou não às investigações – e formadores de opinião, que absolutamente todos os episódios, do 8 de janeiro ao suposto plano homicida dos “kids pretos”, passando pelas “pipe bombs” de Francisco Luiz, fazem parte de uma única e enorme conspiração. E surpreende-nos que tantos brasileiros, anônimos e famosos, estejam comprando essa teoria, seja por pura falta de reflexão e questionamento, seja porque ela se ajusta perfeitamente às convicções e preconceitos de cada um.
Nem a insanidade – no sentido popular, não no sentido clínico da palavra – já atestada pelos atos de um Francisco Luiz, nem a insanidade de militares que teriam planejado envenenar ou explodir um presidente e vice eleitos e um ministro do STF podem servir de justificativa para as centenas de denúncias e condenações sem individualização da conduta e sem o direito à ampla defesa em julgamentos virtuais, como as que temos visto na resposta ao 8 de janeiro. Não faz o menor sentido defender que o fato de um homem lançar rojões no STF justifica que uma mulher seja mantida presa por longos meses sem que fosse oferecida uma denúncia, afastada dos filhos pequenos, por ter escrito palavras com batom na estátua da Justiça. E, se usamos aqui o caso da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, é apenas porque se trata de um dos mais emblemáticos entre os inúmeros casos de abuso judicial perpetrados desde que centenas de pessoas foram presas no acampamento montado diante do QG do Exército, em Brasília.
Os mesmos formadores de opinião que se apressam em estabelecer a narrativa da conspiração golpista ampla, geral e irrestrita também já aproveitaram os episódios dos últimos dias para reforçar sua oposição a qualquer tentativa de anistiar os réus e condenados do 8 de janeiro – posição também defendida publicamente por Moraes, sempre pronto a falar fora dos autos e marcar terreno como um inflexível protetor da democracia brasileira. É importante lembrar que a concessão de anistia é prerrogativa do Congresso, e que os casos em tela não se encaixem nas circunstâncias em que a Constituição e a lei penal vedariam tal concessão, mas ainda mais importante é desmontar a grande falácia em torno do tema.
Quem fala em anistia não o faz por considerar que os fatos de 8 de janeiro de 2023 sejam uma irrelevância; ninguém há de negar a gravidade do que ocorreu naquele dia. A anistia entrou nas discussões porque, em vez de dar a resposta adequada, investigando e punindo com rigor, mas também com critério e provas robustas, PGR e STF estão cometendo um erro judiciário atrás do outro. São erros que precisam ser consertados, e que não o serão pelo Supremo. Como afirmou a Gazeta do Povo tempos atrás, “se isso [a anistia] acabar levando à impunidade para criminosos reais, depredadores ou golpistas, não será por culpa dos congressistas, mas da PGR e do STF, que não cumpriram sua tarefa a contento e em respeito à Constituição”.
É inaceitável que cada novo episódio desse tipo, seja real ou fabricado – como o caso do entrevero envolvendo Moraes e três brasileiros no aeroporto de Roma –, sirva de pretexto para mais relativização das garantias democráticas, mais perseguição, mais restrições à liberdade de expressão, enfim, mais de tudo aquilo que se choca frontalmente com a democracia que tantos defendem no discurso, mas vilipendiam na prática. Um episódio gravíssimo como o da possível existência de um plano homicida contra Lula e outras autoridades precisa ser investigado com total rigor e também com serenidade. Caso a vil conspiração seja confirmada, que cada um dos implicados seja devidamente punido conforme prevê a lei. Mas a eventual loucura de uns não pode ser usada para justificar os abusos já cometidos e aqueles ainda por cometer.