Com o prolongamento do impasse em torno do inquérito que apura fake news que corre no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes e tutela do presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, o Brasil está a ponto de entrar em uma crise institucional sem precedentes. Em uma série de ações que configuram claro abuso de poder, Toffoli e Moraes assumiram funções persecutórias próprias do Ministério Público, em contrariedade à Constituição, ensejando uma reação aguda não só da opinião pública, mas da sociedade civil organizada, de outras instituições, como a Procuradoria-Geral da República, e de membros do Congresso Nacional.
O sistema de freios e contrapesos na separação dos poderes foi concebido justamente para evitar esse tipo de abuso. Há freios e contrapesos internos, por meio de procedimentos e pelo controle dos próprios pares – um exemplo do qual, no Judiciário, não deixa de ser o duplo grau de jurisdição e a existência de recursos. Mas há também freios e contrapesos externos, em que Executivo, Judiciário e Legislativo atuam para coibir, preventiva ou reativamente, eventuais abusos uns dos outros. O Legislativo pode, por exemplo, sustar o efeito de decretos do poder Executivo. No sistema constitucional brasileiro, não cabe ao Legislativo rever decisões do STF – hipótese admitida em outros países em algumas circunstâncias –, mas cabe ao Senado fazer o controle da atividade dos ministros do tribunal por meio do procedimento de impeachment, se houver crime de responsabilidade.
O texto constitucional é claro. No inciso II ao artigo 52, lê-se que compete privativamente ao Senado Federal: “processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade”. Já a Lei 1.079/1950, que regulamenta o processo de impeachment das autoridades públicas, traz, em seu artigo 39, as hipóteses de crimes de responsabilidade de ministros do STF: “alterar, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal; proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa; exercer atividade político-partidária; ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”.
É inimaginável que o Supremo possa usar como escudo o fato de que é o último intérprete da Constituição para transformar-se em uma máquina de perseguição política
A situação toda em volta deste inquérito é tão aberrante que custa crer que Toffoli, Moraes e qualquer outro ministro que esteja apoiando este inquérito nos bastidores não tenha uma compreensão que os leve a acreditar justificado esse curso de ação. Esta Gazeta do Povo sempre teve o cuidado de apontar que é tênue a fronteira entre a aplicação da lei, que muitas vezes requer uma interpretação teleológica e sistêmica bastante complexa, e o ativismo judicial, hipótese em que o Judiciário inventa uma norma que não pode ser extraída do conjunto do ordenamento jurídico sob nenhuma interpretação razoável. Neste caso, porém, estamos além da dúvida.
A ampla maioria da comunidade jurídica razoável está de acordo que a manobra regimental que permitiu ao STF tornar-se, ao mesmo tempo, vítima, investigador e julgador em última instância agride de maneira grave e inédita uma série de normas legais e princípios constitucionais. Neste mesmo espaço, já expusemos as razões para tanto. A situação tornou-se ainda mais absurda em face da decisão disparatada que mandou a revista eletrônica Crusoé tirar do ar, sem razão jurídica consistente, uma reportagem sobre um documento real que citava o presidente do Supremo e das ações de busca e apreensão contra postagens inócuas em redes sociais – um conjunto de ações com clara intenção intimidadora e de repercussão política. Não contente, o ministro relator, contrariando a jurisprudência do tribunal, negou-se a arquivar o inquérito, que sequer deveria existir, quando a procuradora-geral da República resolveu reagir ao disparate e determinar o arquivamento.
O imbróglio todo só não chegou ao ponto da ruptura institucional perpetrada pelo Judiciário porque ainda há tempo de a maioria do tribunal fazer um chamado ao bom senso e restaurar a ordem constitucional, articulando para o que plenário do Supremo enterre o inquérito aberrante e anule todas as decisões tomadas em seu bojo. Há ações no tribunal para permitir isso em pouco tempo – basta que o ministro Edson Fachin apronte e libere seu voto na ação da Rede Sustentabilidade que questiona o inquérito ou que a PGR recorra da negativa de seu arquivamento. Em ambos os casos, o que é um complicador que dependerá de articulação interna à corte, o caso só iria para o plenário por decisão do presidente do tribunal, que parece o mais interessado na confusão que se instalou.
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Porém, se o STF continuar falhando como instituição e deixando livre o caminho para que dois ministros ajam como perseguidores ao arrepio da lei, abre-se a perspectiva de que o Senado Federal deva assumir sua responsabilidade no arranjo institucional brasileiro como freio e contrapeso ao Supremo. A persistir a situação absurda que os dois ministros criaram, o impeachment de Toffoli e Moraes estaria justificado e seria a solução institucional adequada a ser conduzida de forma responsável pelas lideranças políticas. A qualidade da democracia brasileira e a estabilidade do país não dependem de o STF tornar-se intocável e seus ministros converterem-se deuses inimputáveis. Antes, depende do respeito às leis e à Constituição e que cada poder atue no limite de suas competências – é inimaginável que o Supremo possa usar como escudo o fato de que é o último intérprete da Constituição para transformar-se em uma máquina de perseguição política.
Caberia, portanto, às lideranças políticas do país – especialmente aos senadores e, em alguma medida, ao presidente da República – articular uma saída para a crise institucional de maneira sóbria e responsável, como o Congresso já foi capaz de fazer em duas ocasiões quando foi a Presidência da República que abusou de suas prerrogativas. A própria abertura de um processo de impeachment contra os ministros pode ser incentivo suficiente para que o STF tome a decisão de enterrar de vez o inquérito ou para que os próprios Dias Toffoli e Alexandre de Moraes deem fim a seus abusos – e para que os ministros do Supremo tenham a consciência de que há limites que não podem ser cruzados sem consequências.
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É inegável que o melhor seria o país não ter de chegar a uma situação limite, em um momento em que reformas importantes demandam a atenção do Congresso, mas tampouco é razoável que tamanha arbitrariedade possa romper a separação dos poderes e ameaçar a democracia brasileira. É passada a hora de Toffoli, Moraes e o plenário do Supremo se comportarem de acordo com a lei e a Constituição e resolverem a crise para a qual arrastaram a si e ao país.