Antes tarde do que nunca, a Procuradoria-Geral da República se mexeu para reverter ao menos parte do insano revisionismo histórico que o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, quer implantar em relação à Lava Jato. Na segunda-feira, dia 5, o procurador-geral Paulo Gonet entrou com recurso para reverter a suspensão do pagamento da multa da J&F, pedindo que o caso seja julgado pelo plenário ou, ao menos, que Toffoli deixe de ser o relator. O recurso vem com um atraso considerável – a liminar do ministro foi concedida em 20 de dezembro do ano passado –, mas dá ao plenário da corte a chance de reverter um erro grotesco e colocar as coisas em seu devido lugar.
A mudança de relatoria já seria o mínimo do mínimo em termos de decência por parte do principal tribunal do país, já que Toffoli não tem a menor legitimidade moral para julgar um caso envolvendo uma empresa defendida por sua esposa. Bem sabemos, no entanto, que no Brasil suspeições e impedimentos são coisa para magistrados de instâncias inferiores, regras a que os supremos ministros se submetem apenas quando bem entenderem, normalmente em casos de menor importância para o país, ou quando o absurdo seria grande até mesmo para os padrões do STF. Portanto, resta ao plenário – e não à Segunda Turma, que seria o sonho dos revisionistas – tomar para si a tarefa de restaurar a normalidade neste caso.
O futuro do combate à corrupção no Brasil não pode ficar nas mãos de um único ministro – ainda mais um cujos laços o tornam inadequado para tomar as decisões que tomou
No recurso, Gonet rebateu o argumento segundo o qual a J&F, a holding de propriedade dos irmãos Wesley e Joesley Batista, teria sido “pressionada” pela Procuradoria da República do Distrito Federal a assinar o acordo de leniência, afirmando que a lorota da “chantagem institucional” é baseada única e exclusivamente em “ilações e conjecturas abstratas sobre coação e vício da autonomia da vontade negocial”. De fato, como afirmamos dias atrás, é preciso ter uma atitude de espectador de cinema, disposto a aceitar qualquer coisa que desafie a realidade, para crer que uma empresa capaz de recrutar equipes jurídicas de primeira linha tenha sido forçada ao que quer que seja. Acordos de leniência sempre têm seus ônus e bônus, e, por maiores que sejam as multas, também há benefícios nada desprezíveis, como o encerramento de ações na Justiça e a revogação de sanções legais, como as que impedem a empresa de negociar com o poder público.
O mesmíssimo argumento, aliás, vale para a multa da Odebrecht, anulada por Toffoli em 31 de janeiro, decisão contra a qual a PGR ainda não se moveu. Aqui reside, a nosso ver, uma falha da argumentação de Gonet em seu recurso contra a suspensão da multa da J&F, pois ela deixa implícita uma espécie de “distanciamento”: o acordo com os irmãos Batista foi feito pelo MPF no Distrito Federal e não teria relação alguma com a força-tarefa da Lava Jato, como se aquela tivesse se pautado pela lisura completa em sua atuação, enquanto esta teria recorrido a métodos espúrios. Este é o tipo de narrativa falsa que já prosperou inclusive nos altos escalões da PGR, mas que é preciso repelir com veemência, como já ressaltamos inúmeras vezes.
De qualquer forma, informações de bastidores afirmam que um recurso da PGR é iminente também no caso da Odebrecht. O plenário do STF, a bem da verdade, não chegou nem mesmo a julgar a primeira das decisões revisionistas de Toffoli, de setembro do ano passado, que anulou várias provas fornecidas pela empreiteira como parte do acordo de leniência – uma decisão, ainda por cima, tomada com base em informações equivocadas sobre os trâmites internacionais realizados para a obtenção dos arquivos impugnados e sobre sua integridade, atestada pela Polícia Federal. E, como Toffoli fora citado na delação premiada de Marcelo Odebrecht, também é preciso questionar a atuação do ministro neste caso, em que a decência recomendaria um impedimento ou suspeição.
O recurso ao plenário, por fim, ainda pode contribuir para o fim de novas decisões revisionistas se os ministros não só derrubarem a suspensão das multas, mas também estabelecerem teses gerais para nortear o julgamento caso outras empresas e indivíduos busquem o mesmo tipo de benefício, o que já está acontecendo. Infelizmente, o histórico da corte a esse respeito não é dos melhores. Em 2019, quando o STF começou a anular condenações da Lava Jato com base em um formalismo absurdo envolvendo a entrega de alegações finais por réus delatores e delatados, ainda que não tivesse havido nenhum prejuízo à defesa desses últimos, o plenário acabou nunca estabelecendo uma regra geral, mesmo reconhecendo tal necessidade. O presidente do Supremo, àquela época, era justamente Dias Toffoli.
O futuro do combate à corrupção no Brasil não pode ficar nas mãos de um único ministro – ainda mais um cujos laços o tornam inadequado para tomar as decisões que tomou. Quanto antes tivermos a totalidade dos ministros se pronunciando, melhor para a própria corte, que precisa urgentemente apagar a impressão de que o STF é menos um colegiado e mais um aglomerado de “11 Supremos” que abusa de decisões monocráticas. E, para uma corte que tem se notabilizado por decisões que vêm demolindo tudo o que a Lava Jato construiu, este julgamento seria a chance para preservar ao menos os fiapos que sobraram, em vez de declarar de uma vez por todas que o crime de colarinho branco segue compensando.
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