A posse de Jair Bolsonaro para um mandato de quatro anos não é uma simples troca de governo. Após quatro eleições presidenciais vencidas pelo PT, um partido de esquerda, e seus 14 anos e meio de mandato – com parte do último mandato petista cumprida pelo vice, filiado ao MDB –, sai um governo de viés esquerdista e inclinação marxista e entra um governo conservador; logo, muda a corrente de pensamento no comando da nação. O rodízio de liderança e a mudança de linha doutrinária são elementos essenciais da democracia, significando a substituição de um grupo por outro de maneira pacífica, e fazem parte do direito da população de experimentar formas alternativas de governar.
O presidente Bolsonaro entrou deixando claro que vai mudar o rumo das ações de governo em várias áreas, e uma delas é a política externa. Ainda antes da posse, a expressão “pragmatismo responsável” foi bastante lembrada como uma possível diretriz para o Itamaraty. Por pragmatismo pode-se entender a estratégia de ação objetiva, que leve em conta os interesses do país sem maiores considerações de natureza filosófica ou doutrinária. Um exemplo de ação pragmática é quando um país firma acordos comerciais com outro país ainda que haja diferenças entre eles em matéria de regime de governo, sistema econômico e posições sobre pontos específicos de interesse mundial. Quanto ao vocábulo “responsável”, ele sugere que as ações de política externa levarão em conta os tratados internacionais, as consequências sobre a economia, a busca do desenvolvimento nacional e o respeito às normas assinadas pelo Brasil no campo do meio ambiente e dos direitos humanos.
O novo chanceler tem um plano ambicioso, que contrasta com a diplomacia que o Brasil se acostumou a ver sob o petismo
“Pragmatismo responsável” era o rótulo da política externa brasileira adotada pelo chanceler Antônio Azeredo da Silveira no governo Ernesto Geisel (1974-1979), e foi o resultado de um momento peculiar e grave na economia brasileira. Geisel assumiu no primeiro ano da crise do petróleo, que levou o preço do barril subir de US$ 3,30 (na média) para US$ 14 e feriu o Brasil de morte em suas contas externas e nas possibilidades de crescimento econômico e desenvolvimento social. No começo da crise, o Brasil ainda era importador de 75% do petróleo que consumia, em parte como decorrência da prioridade absoluta ao transporte rodoviário e da negligência com o transporte ferroviário e hidroviário. A Petrobras, que fora criada como empresa estatal monopolista e entrou em operação em 1954, andara tão devagar que, 20 anos depois, não conseguia suprir mais que 25% da demanda nacional por derivados do petróleo. Geisel percebeu que seu Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) iria ser frustrado, e ele resistiu a reduzir as importações de petróleo – que, muito mais caro, imporia recessão interna –, optando por tomar empréstimos no exterior para pagar as importações. Esse foi o estopim da enorme dívida externa do país dos anos seguintes.
A estratégia do governo significou forte guinada nas relações exteriores, aumento da inserção do Brasil no mercado internacional e adoção do “pragmatismo responsável” no comércio exterior. A diretriz era exportar o máximo possível, sem olhar muito as cores políticas e econômicas dos parceiros comerciais. Foi algo parecido com a resposta de Deng Xiaoping que, quando perguntado por que a China devia se abrir para práticas capitalistas, disse que “não importa a cor do gato, desde que ele agarre o rato”. Foi nessa época que a diplomacia brasileira sob a liderança do chanceler Azeredo da Silveira estreitou vínculos com os países árabes, autorizou a instalação de um escritório da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Brasília e aplicou a estratégia de exportar serviços, produtos primários e produtos industriais em troca do fornecimento de petróleo. Foi também no começo do governo Geisel que se deu a ampliação das relações diplomáticas e comerciais com a China.
Artigo do novo chanceler: Mandato popular na política externa (26 de novembro de 2018)
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Esse conjunto de ações levou muitos analistas a dizerem que o chanceler Azeredo da Silveira tinha inclinação socialista e terceiro-mundista, sobretudo porque, com a nova política externa, o Brasil acabaria criando tensões nas relações com os Estados Unidos e dando certa prioridade, no âmbito das nações capitalistas desenvolvidas, ao relacionamento com a Europa Ocidental e o Japão, por meio de aumento da atração de investimentos, implantação de projetos agrícolas e industriais, transferência de tecnologia e cooperação econômica. Foi nessa época que, diante da recusa dos Estados Unidos em apoiar o projeto nuclear brasileiro, o presidente Geisel firmou o Acordo Nuclear com a Alemanha Ocidental.
Esses aspectos da história das relações exteriores do Brasil vêm à tona a propósito da volta da ideia de pragmatismo sob o novo chanceler, Ernesto Araújo. O ministro não renega o conceito – muito pelo contrário: o pragmatismo, a cautela e a prudência são “bons instrumentos, quando sabemos para onde ir”, afirmou em seu discurso na transmissão do cargo, em 2 de janeiro. Mas antes, acrescentou o chanceler, é preciso justamente saber para onde ir, e isso foi perdido nos últimos tempos. O Itamaraty, disse ele, existe “para o Brasil”, não “para a ordem global” nem “para si mesmo”.
Azeredo da Silveira foi, a propósito, citado por Araújo em seu discurso. O novo chanceler lembrou que, para seu antecessor, “a maior tradição do Brasil é saber renovar-se”. Se o “pragmatismo responsável” do período Geisel provocou forte reação dos Estados Unidos e críticas de setores conservadores da política brasileira, inclusive dentro do próprio governo, com os atritos entre o Conselho de Segurança Nacional e a diplomacia do Itamaraty, agora os tempos são outros. Araújo quer uma diplomacia ativa, que busque aproximação maior com os Estados Unidos e outras nações, promova intensamente o setor produtivo brasileiro no exterior, participe ativamente dos fóruns multilaterais em defesa das liberdades e direitos básicos; em resumo, aumente a inserção brasileira no mundo. Mas isso, disse o chanceler, não pode ser feito à custa dos valores caros à população, que não podem ser comprometidos. Como isso se dará na prática só saberemos com o passar do tempo, mas não se pode negar que se trata de um plano ambicioso que contrasta com a diplomacia que o Brasil se acostumou a ver sob o petismo. Que esse plano traga bons resultados na economia e faça de nosso país um líder moral.
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