O teto de gastos, o mecanismo que impede a despesa governamental de aumentar mais que a inflação, foi a primeira reforma econômica importante instituída no governo de Michel Temer, ainda em 2016. Era uma resposta à gastança desenfreada da “nova matriz econômica” petista, um modelo que destruiu o país, lançando-o na maior recessão da história do Brasil – e que teria terminado em desastre ainda que não tivesse havido nem a corrupção desenfreada que marcou a passagem do PT pelo poder, nem as maquiagens orçamentárias que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff.
As vantagens do mecanismo não são difíceis de entender. O teto é um freio para gestores que acreditam na geração espontânea de dinheiro público e gastam como se não houvesse amanhã, o que mais cedo ou mais tarde gera inflação, desvalorização da moeda, recessão e desemprego, como ocorreu em 2015-2016. Em tempos de vacas gordas, quando o país e a arrecadação crescem, ou quando surgem receitas extraordinárias – por exemplo, oriundas de alguma privatização –, o teto impede que a despesa aumente no mesmo ritmo, permitindo que os recursos adicionais sejam usados, por exemplo, no abatimento da dívida pública ou em uma poupança para temos mais complicados.
O problema não está na instituição de um programa social, mas na insistência em violar as regras de saúde fiscal para que ele seja viabilizado
Pode-se até discutir se foi boa estratégia aprovar o teto de gastos antes da reforma da Previdência, já que sem mudanças no sistema previdenciário o pagamento de aposentadorias e pensões aumentaria muito acima da inflação, absorvendo fatias sempre maiores do orçamento. Da mesma forma, é possível questionar se não seria melhor “desengessar” antes o orçamento, dando maior margem de manobra aos gestores, antes de implantar uma ferramenta de limitação do gasto global do governo. O que não é possível, no entanto, é questionar o papel do teto como medida positiva em um país conhecido por décadas de irresponsabilidade fiscal.
Esta é a razão pela qual foram tão preocupantes as últimas declarações de Paulo Guedes a respeito da relativização do teto para que seja possível implantar um Auxílio Brasil de R$ 400 em 2022, como deseja o presidente Jair Bolsonaro. O ministro da Economia, até agora defensor intransigente da âncora fiscal, propôs medidas que, na prática, significavam contornar o teto: ou uma revisão antecipada do mecanismo, o que estava previsto para ocorrer apenas em 2026, ou um “waiver” de R$ 30 bilhões – um termo elegante para se abrir um rombo no teto. No fim, a solução encontrada foi alterar o intervalo de medição da inflação para calcular o reajuste do teto e inserir essa mudança na PEC dos Precatórios, aprovada em comissão especial na quinta-feira.
A reação do mercado financeiro foi semelhante à de terça-feira: bolsa em queda e dólar em nova disparada tanto na quinta quanto na sexta-feira, reflexos de maior desconfiança em relação ao futuro fiscal do país. Além disso, quatro secretários da equipe de Guedes, todos ligados às áreas de Orçamento e Tesouro Nacional, pediram demissão, em um movimento que lembra a saída de dois membros importantes da equipe econômica, Salim Mattar e Paulo Uebel, em agosto do ano passado.
No meio desta discussão, é preciso evitar uma falsa dicotomia entre a ajuda aos brasileiros mais vulneráveis e o ajuste fiscal, como se o problema fosse simplesmente o auxílio de R$ 400. Qualquer brasileiro sabe da importância deste dinheiro para os mais pobres, e todos recordam como o auxílio emergencial de R$ 600 foi essencial durante a pandemia. O problema não está na instituição de um programa social, mas na insistência em violar as regras de saúde fiscal para que ele seja viabilizado porque é “impossível” encontrar os recursos dentro do orçamento, sem precisar recorrer a truques para burlar o teto de gastos – truques que destroem a confiança no país e têm tudo para seguir puxando inflação e juros para cima, prejudicando o crescimento e a geração de emprego, e aumentando as chances de estagnação da economia em 2022.
O teto de gastos, por mais lógico e saudável que seja, é o inferno para políticos porque os força a reconhecer que o dinheiro público não é ilimitado e a fazer escolhas
“Impossível” entre aspas, porque o dinheiro existe. O que não existe é a disposição em fazer os cortes em outras despesas para que aquele recurso seja redirecionado ao Auxílio Brasil. O teto de gastos, afinal, por mais lógico que seja, por mais saudável que seja para a gestão das contas públicas, é o inferno para políticos porque os força a reconhecer que o dinheiro público não é ilimitado e a fazer escolhas – escolhas que sempre deixarão descontentes: aliados políticos e parlamentares gulosos por emendas, grupos de pressão, corporações, alguém deixará de ser contemplado em algum momento. É verdade que todo o engessamento atual do orçamento limita o poder de escolha do gestor, deixando uma parte pequena dos recursos públicos para que ele decida como aplicá-lo, e por isso é essencial retomar o debate sobre os “três Ds” (desvincular, desindexar e desobrigar) propostos por Guedes desde o início do mandato. Mas nem isso justifica o abandono do ajuste fiscal.
Em agosto de 2020, o então colunista da Gazeta do Povo Fernando Schüler escreveu que “uma economia bem arrumada é um bem que interessa especialmente aos mais pobres”. Um país que coloca contas em ordem mostra ser porto seguro para investimentos que geram emprego e renda, impede a desvalorização da moeda (o real enfraquecido tem sido um dos principais motivos para a disparada da inflação, que é especialmente cruel com os mais pobres) e permite crescimento constante e sustentável, em vez de “voos de galinha”. Não é preciso escolher entre ajuste fiscal e políticas de auxílio aos mais vulneráveis, mas conciliar as duas prioridades exige inteligência na gestão do recurso público e coragem para fazer escolhas difíceis, mas necessárias.