A cidade pequena é um mito saboroso, matéria-prima para boas novelas. Habita nosso imaginário ainda rural – ali, dorme como um lugar onde a vida digna e tranquila se faz possível. A música popular alimenta esse gosto secreto. Vai de clássicos, como Casa no campo, sucesso na voz de Elis Regina, passa pela sofisticada Canto em qualquer canto – eternizada por Mônica Salmaso –, culminando em um sem-número de canções de raiz. Pesquisas não desmentem a dita de que “existe um lugar” para milhões que adorariam fugir. Eles se pegam pensando em como suas histórias seriam diferentes se morassem no interior. Idealizam – teriam amizades, contato com a natureza, respirariam bons ares.
A questão, contudo, não funciona de forma binária. O desejo pelas pequenas cidades – e o lugar que ocuparão num mundo que se encaminha cada vez mais para o modelo metropolitano – mexe com os nervos de urbanistas, arquitetos, antropólogos e sociólogos. É um debate da hora, planetário, e incomoda constatar o silêncio brasileiro em torno dele.
As políticas para cidades pequenas são possíveis. Num estado de forte matriz agrícola como o Paraná, são muitas e evidentes as possibilidades
A passagem dos 40 anos da Geada Negra, efeméride lembrada em 18 de julho, foi uma boa oportunidade para levantar essa lebre. Depois de 1975, ano do evento meteorológico que varreu os cafezais do mapa do Paraná, o estado viu sua população rural ser reduzida pela metade. Dos 4,5 milhões de colonos ficou a saudade. Muitas cidades nascidas da lógica da produção de café minguaram. Tiveram de se reinventar, o que exige boa sorte de criatividade e um empurrãozinho da economia. Em mais de um depoimento, pessoas que presenciaram ou que estudaram a Geada Negra levantaram a questão: é importante manter viva a memória do episódio, mas sobretudo urge pensar o estado do Paraná depois do fim do café. Podemos dizer que ainda estamos engatinhando nesse quesito, à revelia de contribuições importantes como a da pesquisadora Angela Maria Endlich, autora da tese de doutorado Pensando os papéis e significados das pequenas cidades do Noroeste do Paraná, defendida na Unesp em 2006. O trabalho de Endlich sobre o Paraná acerta o passo com o debate mundial sobre a importância e o futuro das cidades pequenas. Mostra que a rede cafeeira criou uma expressiva rede urbana no Paraná – e que o fim do ciclo deixou esse cinturão urbano e rural num misto de vertigem e desespero.
O desafio apontado pela pesquisadora é evidente – já são horas de reconhecer a cidade pequena como um “lugar”, um espaço concreto que se alia à grande rede urbana, formando um circuito biodiverso de relações. Fazer esse reconhecimento seria um primeiro passo para puxar a conversa e saber que rumo tomou o estado pós-Geada Negra. É certo que valem os índices como o IDH e o da Firjan, mas sobretudo conta nessa hora a disposição para fazer um mergulho antropológico na personalidade desses municípios. Razões para tamanho esforço não faltam. A conquista da urbanidade – no sentido de desenvolvimento aliado ao conhecimento – vale para todos os núcleos humanos. O urbano é sinônimo de acesso, de participação nos ganhos tecnológicos, de uso do espaço público digital. Triste a sociedade que estender esse direito apenas a um tipo de grupo.
A urbanidade, acrescente-se, é tão vasta e diversa quanto são as cidades e os campos. É trabalhoso e fascinante pensar na possibilidade desse laboratório. Até meados do século passado, tudo o que uma cidade queria era uma fábrica, para que ali houvesse empregos, e uma estrada que conduzisse mais riquezas até lá. No mundo globalizado, Londres – exemplo por excelência – não precisa ter indústrias para ser rica. As empresas de todo e qualquer lugar querem que seus executivos morem lá, para fruir da cultura e do empreendedorismo que oxigena a cidade.
Toda e qualquer municipalidade precisa descobrir sua vocação – a londrina, a fabril, a turística. É fato que as cidades padecem mais nesse processo, mas há exemplos por aí, mostrando que é possível. O próprio Brasil tem inúmeros exemplos positivos – mas em especial de cidades de médio porte, como Londrina, Maringá, Joinville, sem falar num sem-número de municípios do interior de São Paulo. A cidade pequena, no entanto, amarga a invisibilidade e a solidão na sua busca por existência. Há casos como a minúscula Quatro Pontes, no Oeste do estado, com seus 3,8 mil habitantes com baixíssima taxa de analfabetismo e ganhos de gente grande. Há casos das cidades que encolhem, como Altamira do Paraná, Santa Tereza do Oeste, Porto Barreiro, Matinhos e Santo Antônio do Paraíso.
Não é questão sem saída – as políticas para cidades pequenas são possíveis. Num estado de forte matriz agrícola como o Paraná, são muitas e evidentes as possibilidades. O fórum de ideias está aberto. Quatro décadas depois da Geada Negra, é o que podemos e devemos fazer.
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