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Editorial

A democracia traída

posse de Maduro
Nicolás Maduro assina termo de "posse" em Caracas. Ele foi declarado vencedor da eleição de 28 de julho de 2024, mas houve fraude na apuração. (Foto: EFE/Alejandro Azcuy/Presidencia de Cuba)

No evento que marcou os dois anos do 8 de janeiro, no Palácio do Planalto, o presidente Lula saiu-se com mais uma de suas tiradas de mau gosto ao descrever-se como um “amante” da democracia – e não no sentido mais simples, de alguém que ama algo. “Não sou nem marido, eu sou um amante da democracia. Porque a maioria das vezes os amantes são mais apaixonados pela amante do que pelas mulheres. E eu sou um amante da democracia porque eu conheço o valor dela”, disse o petista. Mas bastaram apenas dois dias para que esse “amante” trocasse a democracia por outra.

Nesta sexta-feira, em Caracas, Nicolás Maduro organizou mais um teatro no qual recebeu os símbolos da chefia do Poder Executivo da Venezuela, usurpando-a do legítimo vencedor do pleito de julho de 2024, Edmundo González Urrutia. Naquela ocasião, com 83% das urnas apuradas, o Conselho Nacional Eleitoral, submisso a Maduro, simplesmente parou a contagem e, logo depois, declarou o ditador como vencedor do pleito, alegando que ele vencera com 52% dos votos. A oposição democrática, no entanto, tinha em mãos boletins de urna, impressos nas seções eleitorais ao fim da votação, em número suficiente para comprovar que González havia vencido por 67% a 30%. O Centro Carter, observador independente aceito por Caracas, endossou os números da oposição.

Só um chapabranquismo contumaz consegue enxergar uma manifestação de descontentamento no envio da embaixadora Glivânia. Pelo contrário: trata-se do reconhecimento explícito que Lula havia adiado o quanto pôde

Lula, o “amante” da democracia, mas também amigo de Maduro, tentou ganhar tempo afirmando que não reconheceria nenhum vencedor enquanto o CNE não apresentasse os boletins de urna (os mesmos documentos, mas apresentados pela oposição, obviamente não serviam). Maduro ignorou o pedido, a Justiça venezuelana chegou a criminalizar quem divulgasse as atas, González foi forçado a se exilar na Espanha, e ainda assim o petista não dava o passo decisivo que praticamente todas as grandes democracias do Ocidente já haviam dado, sem falar de governos latino-americanos de esquerda, como o do chileno Gabriel Boric: afirmar que um ditador havia cometido uma fraude, e que o legítimo presidente eleito era seu oponente.

Com a aproximação do 10 de janeiro, Lula teve de decidir o que fazer em relação à cerimônia de usurpação do poder, e decidiu enviar a embaixadora brasileira em Caracas, Glivânia Oliveira. Segundo informações de bastidores, chegou a haver uma reavaliação da decisão no dia 9, diante das notícias de que a líder oposicionista María Corina Machado havia sido atacada e detida após uma manifestação dos democratas venezuelanos – ela foi libertada horas depois. No entanto, mesmo com esse ato final de violência por parte da ditadura bolivariana, Glivânia esteve na cerimônia, ao lado de ditadores como o cubano Miguel Díaz-Canel e o nicaraguense Daniel Ortega, além de representantes de outros regimes ditatoriais, como o russo, o chinês e o bielo-russo. Nações democráticas, incluindo a maioria dos países sul-americanos, os Estados Unidos e os membros da União Europeia, não enviaram ninguém.

Como afirmamos neste espaço dias atrás, um embaixador não é um representante qualquer, e só um chapabranquismo contumaz consegue enxergar na escolha por mandar Glivânia uma manifestação de descontentamento ou “reprimenda” ao ditador. Pelo contrário: trata-se do reconhecimento explícito que Lula havia adiado o quanto pôde, na tentativa de iludir a parte da opinião pública brasileira que insiste em vê-lo como alguém comprometido com a democracia. Se Lula não foi a Caracas pessoalmente, isso só ocorreu porque a repercussão negativa seria intensa e mesmo os seus bajuladores teriam dificuldade para explicar o fato.

Celso Amorim, chanceler de facto e o arquiteto da política internacional moralmente delinquente de Lula, alegou “pragmatismo” para justificar a presença da embaixadora brasileira na encenação chavista. Endossar uma fraude eleitoral escancarada; legitimar o poder de um ditador sanguinário, especialista em massacrar a própria população pelas armas ou pela fome; abrir mão de trabalhar para que a democracia retorne à Venezuela ao desprezar o legítimo vencedor do pleito de julho – isso não é pragmatismo, mas a demonstração clara de que a democracia é só uma paixonite de verão de Lula; para o petista, amor sincero, esse só o autoritarismo merece.

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