À medida que vão surgindo detalhes do que deve ser a reforma da Previdência proposta pelo governo Jair Bolsonaro, a quem cabe dar a palavra final sobre o projeto que será enviado ao Congresso, vozes discordantes começam a se fazer ouvir, especialmente dentro das classes que hoje têm as regras menos restritivas ou para a obtenção da aposentadoria, ou no cálculo do valor do benefício. É o caso do funcionalismo público federal, que já iniciou a pressão sobre os parlamentares antes mesmo do início da nova legislatura, recebendo deputados e senadores com faixas no Aeroporto Internacional de Brasília no fim de janeiro.
Alguns dos argumentos ou usam de falácias, ou apelam para a emotividade na tentativa de conseguir algum compromisso dos políticos. Foi assim, por exemplo, que uma faixa da Federação dos Aposentados e Pensionistas do Distrito Federal afirmava que “a Previdência não é deficitária”. A ideia não é nova, tem entre seus criadores entidades representativas de auditores da Receita Federal e chegou até mesmo a ser aceita em uma CPI no Senado, cujo relatório afirmava taxativamente que “tecnicamente, é possível afirmar com convicção que inexiste déficit da Previdência Social ou da Seguridade Social”. Essa tese, no entanto, não funciona nem mesmo com a ajuda da boa e velha criatividade contábil, que coloca a Previdência dentro de um balaio maior, o da Seguridade Social. Afinal, até essa rubrica passou a apresentar déficit, segundo os números mais recentes, relativos a 2017: um rombo de R$ 292,4 bilhões, pelos dados de março de 2018 divulgados pelo Ministério do Planejamento, hoje parte do Ministério da Economia.
Não existe uma falsa dicotomia entre fazer a reforma ou cobrar os devedores
A insistência em negar a realidade causa um enorme dano ao país, pois atrasa reformas que já deveriam ter sido feitas há muito tempo. Fato é que o déficit previdenciário é amplo, geral e irrestrito: em 2018, foi de R$ 195,2 bilhões no INSS, R$ 46,4 bilhões no regime dos servidores civis, R$ 43,9 bilhões para os militares e R$ 4,8 bilhões no Fundo Constitucional do Distrito Federal. Estamos falando de quase duas vezes e meia o déficit primário do país no ano passado, de R$ 120 bilhões.
Os números ainda mostram a fraqueza do argumento da “cobrança dos devedores do INSS”, como se ela tivesse o condão de resolver o problema. É evidente que quem está em atraso com as obrigações previdenciárias tem de ser cobrado, mas a medida seria apenas um paliativo. O relatório final da mesma CPI do Senado que dizia não haver déficit na Previdência apontava que a dívida total das empresas com o INSS era de R$ 450 bilhões – ou seja, se toda ela fosse recuperada, bastaria para cobrir apenas pouco mais de dois anos de déficit. Mas, de acordo com a Procuradoria da Fazenda Nacional, os débitos considerados recuperáveis somam apenas R$ 175 bilhões, ou seja, não compensariam nem mesmo o rombo de 2018 do INSS. Não existe uma falsa dicotomia entre fazer a reforma ou cobrar os devedores.
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Outro dos slogans usados para pressionar os parlamentares diz que “o servidor público não é o vilão”, como se a sociedade estivesse à procura de um bode expiatório para esfolar, e tivesse encontrado essa figura no funcionário público. Ora, não se trata de promover nenhuma caça às bruxas, mas de reconhecer o óbvio: que o funcionalismo civil federal (os servidores estaduais e municipais têm regimes próprios de previdência, bancados pelos governos locais), embora represente apenas 2% dos beneficiários, responde por pouco mais de 15% do déficit total; e os militares, que são pouco mais de 1% dos beneficiários, respondem por outros 15%. Há uma desproporção evidente que só pode ser corrigida mediante regras mais igualitárias na reforma da Previdência.
A reforma, a julgar pelo que foi divulgado até agora, não é perfeita e precisa de melhorias. Não havia motivo razoável, por exemplo, para cobrar de homens e mulheres a mesma idade mínima com o mesmo tempo mínimo de contribuição, como previa a minuta obtida pela imprensa – felizmente, o governo já anunciou que, na proposta final, os homens poderão se aposentar com 65 anos e as mulheres, com 62. Mas é preciso distinguir entre as críticas bem fundamentadas e a defesa corporativista do que se tornou um privilégio. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já havia dito, no início do mês, que a batalha da informação e da opinião pública seria o maior dos desafios para aprovar a reforma. Certamente ele teve em mente o festival de desinformação visto durante o mandato de Michel Temer, em que se afirmava que o governo iria “acabar com a aposentadoria” e “fazer o brasileiro trabalhar até morrer”. Considerando que o sistema atual está condenado à insolvência, o “fim da aposentadoria” e a necessidade de “trabalhar até morrer” são, sim, o que aguarda o brasileiro – caso a reforma não seja feita.