Um sinal da radicalização do Partido Democrata nos últimos anos apareceu em pesquisa do instituto Gallup realizada antes do início das primárias que escolherão o candidato do partido na eleição norte-americana deste ano. Quando simpatizantes do partido foram perguntados sobre qual pré-candidato refletia mais fielmente as posições pessoais dos entrevistados, 28% deles apontaram Bernie Sanders, senador que se define como socialista – mais precisamente, “socialista democrático”, embora socialismo e democracia sejam como água e óleo –, enquanto o ex-vice-presidente Joe Biden teve 20% das menções.
O Gallup também perguntou às mesmas pessoas qual dos pré-candidatos tinha mais chances de vencer o republicano Donald Trump, e 44% delas apontaram Biden (neste quesito, Sanders apareceu com 19%). A pesquisa ainda mostrou que 56% dos entrevistados preferiam um candidato com reais chances de vitória, mesmo que discordassem dele em alguns temas, contra 42% que valorizavam a afinidade ideológica em detrimento do potencial eleitoral – a diferença de 14 pontos, no entanto, já tinha sido de 24 pontos três meses antes, indicando uma tendência de valorização dos candidatos mais radicais.
A eleição de 2016 mostrou o quanto os democratas haviam se distanciado do senso comum do cidadão norte-americano
Depois desta Superterça, em que foram realizadas primárias em vários estados norte-americanos, ficou claro que a disputa realmente será entre o pragmatismo e o radicalismo. Sanders, apesar da surpresa inicial causada por Pete Buttigieg em Iowa, começou bem, enquanto Biden amargava posições intermediárias na corrida. Mas o vice de Barack Obama venceu na Carolina do Sul, em 29 de fevereiro, e ganhou impulso a ponto de Buttigieg e Amy Klobuchar terem desistido da disputa para endossar Biden. Esta aglomeração das forças consideradas “moderadas” fortaleceu Biden, que conquistou delegados suficientes na Superterça para entrar de vez na disputa contra Sanders e se consolidar como a alternativa ao senador. Nesta quarta-feira, outro pré-candidato, o bilionário Michael Bloomberg, também desistiu e anunciou apoio a Biden. A baixa mais recente foi a da terceira colocada até agora nas primárias, a senadora Elizabeth Warren, que oficializou sua saída na manhã de quinta-feira, sem no entanto fazer qualquer pronunciamento sobre apoio. Ela ainda está decidindo se ficará neutra ou endossará um dos dois líderes – ideologicamente, ela é mais alinhada a Sanders, mas analistas afirmam que não seria boa ideia queimar pontes com Biden, que poderia escolhê-la para compor a chapa caso ganhe a indicação.
Ao escolher entre um candidato mais de centro-esquerda e outro claramente esquerdista, os democratas têm uma série de aspectos a ponderar se quiserem vencer Trump. As plataformas radicais de Sanders tendem a afastar o norte-americano moderado, o que seria fatal nos chamados swing states, fundamentais para a vitória de Trump quatro anos atrás. Por outro lado, o senador tem como trunfo o entusiasmo do eleitorado jovem, que já havia se mobilizado por ele em 2016 (quando perdeu a indicação para Hillary Clinton) e segue ativo agora, buscando votos para o socialista. Biden não anima esse eleitor, o que pode prejudicá-lo na hora da disputa pela presidência em um país onde o voto é facultativo – esses jovens precisariam de outra motivação, como uma profunda aversão a Trump, para ir às urnas.
Os democratas, no entanto, não podem contar com a rejeição ao atual presidente como chave para a vitória. A economia norte-americana está exibindo números pujantes, com o desemprego em mínimas históricas e o Fed (o banco central norte-americano) se movimentando para minimizar os efeitos da epidemia de coronavírus, tendo reduzido os juros em sua última reunião. O frustrado processo de impeachment contra Trump foi um tiro que saiu pela culatra, aumentando a popularidade do presidente.
A eleição de 2016 mostrou o quanto os democratas haviam se distanciado do senso comum do cidadão norte-americano, adotando uma superioridade moral tão arrogante que levou Hillary Clinton – que nem era a mais radical dos pré-candidatos – a se referir a boa parte dos eleitores de Trump como “deploráveis”. As primárias democratas, assim, não são apenas uma disputa entre dois políticos, mas entre duas posturas: aprofundar essa clivagem ou reconhecer o erro e construir pontes com aqueles que o partido vem desprezando.