A muito necessária inserção da possibilidade de início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância exige duas mudanças importantes: na Carta Magna, para que não haja dúvida quanto à constitucionalidade dessa medida, mas também no Código de Processo Penal, cuja redação atual foi, inclusive, o ponto de partida para que o Supremo Tribunal Federal revertesse, em 2019, sua jurisprudência de 2016 (que, por sua vez, refletia a regra que vigorou no Brasil por décadas, até 2009) e acabasse com essa possibilidade de prisão. Enquanto o CPP seguir afirmando que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”, continuará a haver um obstáculo importante para a prisão em segunda instância.
Tramita no Congresso Nacional há muitos anos um projeto de lei para a instituição de um novo Código de Processo Penal – sua aprovação no Senado ocorreu em 2010 –, e isso permitiria trazer de volta a possibilidade de prisão em segunda instância em ao menos uma daquelas duas frentes. No entanto, essa mudança tão fundamental para o bom combate ao crime no Brasil corre risco. O relator do texto na Câmara, deputado João Campos (Republicanos-GO), fez a coisa certa e incluiu o início do cumprimento da pena após a condenação por colegiado. Mas um grupo pequeno de deputados escolhido a dedo pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pode colocar a perder este avanço.
A prisão em segunda instância não apenas é o desejo da sociedade, mas também a melhor prática de combate ao crime, aplicada em praticamente todas as democracias sólidas, e que condiz perfeitamente com as atribuições de cada instância da Justiça no Brasil
Em 2021, Lira dissolveu a comissão especial com 34 deputados, representando todos os partidos, que analisava o projeto e instituiu um grupo de trabalho (GT) com apenas 18 parlamentares selecionados por ele mesmo, e cuja posição majoritária é oposta à prisão em segunda instância. O grupo de trabalho, é preciso recordar, foi o mesmo instrumento usado para analisar o pacote anticrime proposto pelo então ministro Sergio Moro, e também ali a prisão em segunda instância foi derrubada. Os poucos deputados favoráveis à medida no GT do Código de Processo Penal, então, pretendem tirar o tema de dentro do grupo, onde a derrota é certa, para levá-lo ao plenário, onde acreditam que haveria mais apoio, até porque há dúvidas sobre a possibilidade regimental de determinado item ser recolocado no projeto em votação no plenário depois de ele ter sido rejeitado no grupo de trabalho.
Não faz sentido que uma fração mínima do total de deputados cale dessa forma o desejo de tantos brasileiros cansados de crimes e ladroagem, muito menos que a totalidade dos deputados em plenário seja impossibilitada de reverter uma decisão equivocada do grupo de trabalho; isso distorce o sentido da representatividade parlamentar. A prisão em segunda instância não apenas é o desejo da sociedade, mas também a melhor prática de combate ao crime, aplicada em praticamente todas as democracias sólidas. No caso brasileiro, além disso, ela condiz perfeitamente com as atribuições de cada instância da Justiça, pois a análise da culpa – se o réu cometeu ou não o crime de que é acusado – termina exatamente na segunda instância, que corresponde aos Tribunais de Justiça estaduais ou aos Tribunais Regionais Federais; as cortes superiores, como o STJ e o STF, analisam apenas questões processuais, não de culpabilidade.
Por mais que a corrida eleitoral e a situação econômica atual acabem se impondo sobre os demais temas, por razões evidentes, outras pautas, como as relativas a comportamento ou ao combate à corrupção, não podem ser abandonadas ou deixadas de lado – elas dizem respeito ao tipo de país que desejamos, aos valores que consideramos importantes, aos males que julgamos essencial combater. A prisão em segunda instância é um caso emblemático, pois a lei atual brasileira favorece a impunidade ao permitir que réus naveguem o labirinto processual brasileiro até finalmente conseguirem escapar do merecido castigo. Precisamos de mais parlamentares comprometidos com a mudança tanto no CPP quanto na Constituição, para eliminar de vez este obstáculo que impede a justiça de ser cumprida e os criminosos de pagarem por seus atos.
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