No Código de Processo Penal brasileiro, o artigo 312 elenca as condições para que alguém seja mantido preso preventivamente: “quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”. As conjunções importam: não basta haver indício suficiente de que o preso tenha efetivamente cometido um crime; é preciso, também, comprovar que a liberdade do indivíduo investigado traria consigo uma série de riscos. Passados sete meses, ou pouco mais de 200 dias, desde que mais de mil brasileiros foram presos no pós-8 de janeiro, muitos deles sem nem mesmo saber do que eram acusados, é preciso perguntar: por acaso a Procuradoria-Geral da República e o ministro Alexandre de Moraes acreditam que um grupo de menos de 150 pessoas, caso ganhe a liberdade, tentará derrubar o governo e fechar o Supremo?
Andrei Rodrigues, diretor-geral da Polícia Federal, chegou a se vangloriar do que chamou de “maior prisão da história do mundo” a ponto de pleitear a inclusão no Livro Guinness dos Recordes, em referência às 2 mil pessoas (muitas delas bastante simples, além de vários idosos, pais e mães de família) levadas aos presídios da Papuda (masculino) e da Colmeia (feminino) após os atos daquele domingo. Triste Brasil em que um agente da lei se orgulha de sua contribuição para o arbítrio, já que as prisões se deram sem a necessária individualização da conduta – isso quando os detidos tinham alguma ideia do motivo pelo qual estavam sendo privados da liberdade – e incluíram até mesmo pessoas que haviam chegado ao acampamento diante do QG do Exército em Brasília depois do quebra-quebra na Praça dos Três Poderes, a julgar pelo relato do deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), um dos poucos a se preocupar com os abusos cometidos na repressão aos atos de 8 de janeiro.
O garantismo que se aplica sem pestanejar a megatraficantes e a megacorruptos é sumariamente negado a cidadãos brasileiros cujos casos não cumprem as exigências processuais para que se prive alguém de um dos direitos mais fundamentais, a liberdade
A maioria dos que foram presos naquela ocasião já está de volta às ruas, cumprindo outros tipos de medidas restritivas como o uso de tornozeleiras eletrônicas, mas outras 138 pessoas ainda estão na Papuda ou na Colmeia. E isso exige que se faça a pergunta crucial: que risco esses 138 brasileiros ainda oferecem para que se justifique o prolongamento da prisão preventiva? Não há a menor chance de que eles voltem a cometer os “crimes contra a democracia” que lhes são imputados; não há provas a destruir nem testemunhas a intimidar; outras medidas restritivas podem impedir, por exemplo, que eles tentem fugir do país. Mesmo os que já foram liberados provavelmente o foram muito tardiamente, e o próprio Alexandre de Moraes deixou implícito que fazia uso político da prisão preventiva quando mandou soltar 150 detentas por ocasião do Dia Internacional da Mulher, em março.
Por muito menos o Supremo já colocou na rua um chefão do Primeiro Comando da Capital, e também restituiu a liberdade a um ex-governador com 430 anos em sentenças acumuladas (embora ainda não transitadas em julgado) pelos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, fraude em licitação, formação de quadrilha e organização criminosa. No entanto, o garantismo que se aplica sem pestanejar a megatraficantes e a megacorruptos é sumariamente negado a cidadãos brasileiros cujos casos não cumprem as exigências processuais para que se prive alguém de um dos direitos mais fundamentais, a liberdade.
A manutenção dessas prisões, no entanto, é apenas a face mais evidente de um sistema muito maior de arbítrio. Como já mencionamos, centenas de brasileiros foram presos sem que sua conduta fosse individualizada, e da mesma forma, “no atacado”, foram denunciados e tiveram suas denúncias aceitas pelo Supremo, sendo até mesmo interrogados todos de forma padronizada. Isso torna muito real a possibilidade de que venhamos a ter uma multidão de condenados que não cometeram crime algum. Evidentemente, quem invadiu, quem depredou, quem agrediu e quem incitou tem de pagar pelo que fez. Mas, em um Estado de Direito onde vigoram o império da lei e o devido processo legal, é preciso descrever com exatidão o que cada réu invadiu e depredou, quem cada réu agrediu, e como cada réu incitou outros a cometer crimes. De resto, estar no lugar errado, na hora errada, mesmo na companhia das pessoas erradas, não é crime – ao menos em um país que não tenha sido transformado em uma mistura distópica de George Orwell e Franz Kafka.
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