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Editorial

Arbítrio renovado em nome de um “receio de fuga” genérico

Moraes suspende processos contra médicos com base em norma do CFM sobre aborto
O ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos do 8 de janeiro no STF. (Foto: Gustavo Moreno/SCO/STF.)

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A repressão indiscriminada aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023, na Praça dos Três Poderes, mostrou que a individualização da conduta, exigência básica do devido processo legal, já se tornou coisa do passado para a Procuradoria-Geral da República e para o Supremo Tribunal Federal. Centenas, se não milhares, de brasileiros pagaram e continuam pagando pelo que não fizeram; passaram meses atrás das grades desnecessariamente, de forma abusiva, e tiveram lançados sobre suas costas os eventuais crimes cometidos por outras pessoas, sem nenhuma evidência que pudesse implicá-las nem mesmo na depredação pura e simples, quanto mais em tentativas de golpe de Estado.

Por isso, não surpreende a nova leva de ordens de prisão expedidas pelo ministro Alexandre de Moraes contra 208 réus ou condenados pelo 8 de janeiro, ordens essas que violam a lei processual penal e a própria jurisprudência do STF a respeito da presunção de inocência. Nos casos em que a Gazeta do Povo teve acesso aos mandados de prisão – rigorosamente idênticos, seguindo o padrão das denúncias da PGR e dos votos de Moraes pela condenação –, o ministro alega o fato de os alvos dos mandados já terem sido condenados. No entanto, ainda não há o trânsito em julgado, pois ainda cabem recursos, e aqueles já interpostos ainda não foram analisados pela corte; sendo assim, não há como pretender o início do cumprimento da pena, como decidiu o próprio STF em 2019 – uma decisão da qual a Gazeta discordou e discorda, mas que estabeleceu as regras que deveriam estar sendo seguidas agora.

Para contornar essa dificuldade, no entanto, Alexandre de Moraes recorreu a uma acrobacia processual: as prisões não representariam o início do cumprimento da pena, mas sim uma prisão preventiva. Como, no entanto, essas pessoas se encaixariam nos critérios do artigo 312 do Código de Processo Penal? Moraes não explica, limitando-se a invocar um “fundado receio de fuga” – fundado em quê, também não se sabe. O único fato que o ministro consegue alegar é o de que outros réus do 8 de janeiro efetivamente fugiram. Em um país onde funcionassem o império da lei, o devido processo legal e o direito à ampla defesa, no entanto, tais fugas jamais poderiam ser alegadas como razão para prender preventivamente outras pessoas, sem relação alguma com os fugitivos; seria preciso explicar as circunstâncias que levariam a concluir que aquele réu ou condenado em específico estivesse planejando deixar o Brasil.

Nada disso, no entanto, está nos mandados – ao menos não naqueles a que a Gazeta do Povo teve acesso, e que também não descrevem nenhum tipo de descumprimento de medidas cautelares, como a necessidade de comparecimento periódico diante de um magistrado, e que poderia levar a uma ordem de prisão preventiva. Mesmo admitindo que, dentro de um grupo com centenas de pessoas, é possível haver quem tenha realmente violado alguma medida cautelar, e até mesmo quem estivesse organizando uma fuga, podemos afirmar com toda a certeza que muitos brasileiros estão, mais uma vez, pagando injustamente pelos erros de outros.

Várias ditaduras mundo afora criaram a categoria do “culpado por associação”, fazendo familiares e amigos de um “inimigo do povo” pagarem um preço alto pela mera relação de parentesco ou amizade. Moraes consegue ir além disso, mandando de volta para a cadeia pessoas cujo único “laço” com eventuais fugitivos é o fato de terem estado em Brasília no 8 de janeiro. De forma paranoica, conclui que, se uns fugiram, todos os demais também pretendem fazê-lo, mesmo tendo pais idosos sob seus cuidados, ou sofrendo de doenças crônicas e dificuldades de locomoção. Pode-se dar muitos nomes a isso: ilegalidade, arbítrio, abuso, violência, desrespeito... mas nunca “defesa da democracia”.

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