O acordo entre o TSE e o Serasa, desfeito após ter sido denunciado, mostra o desprezo dos burocratas pela privacidade dos cidadãos
Quem já frequentou um parque de diversões certamente já viveu a experiência de andar num "trem fantasma" brinquedo que leva passageiros embarcados num pequeno vagão que trafega vertiginosamente sobre trilhos montados num corredor escuro. A cada curva, repentinamente, surgem das sombras monstros, caveiras e esqueletos ameaçadores. Ouvem-se gritos e rugidos e há até quem, ao fim da brincadeira, sofra os efeitos de acelerada taquicardia.
Pois se parecem também um trem fantasma os sustos que a cada dia acometem a população brasileira diante das surpresas horrendas que respeitáveis instituições públicas lhe pregam. Nessa última curva, revelada nesta semana, soube-se que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), guardião dos dados pessoais dos 141 milhões de eleitores brasileiros, havia cedido esse valioso acervo para uso do Serasa entidade privada que, mediante pagamento, fornece informações fisco-creditícias para bancos e empresas.
Em troca do quê? Outro susto: o TSE seria recompensado com a cessão de quatro "assinaturas digitais", instrumento eletrônico que permitiria a alguns funcionários da corte o acesso a dados cadastrais centralizados pelo Serasa. E pelo prazo de apenas dois anos.
A denúncia foi do jornal O Estado de S.Paulo e pegou de surpresa até mesmo a cúpula do tribunal, que disse nada saber do "acordo de cooperação técnica" que a instituição, numa das voltas escuras do trem fantasma, havia firmado com o Serasa. A presidente do TSE, ministra Carmen Lúcia, condenou a medida e, em seguida, a corregedora-geral da Justiça Eleitoral, ministra Laurita Vaz, determinou a imediata suspensão do acordo esdrúxulo.
De fato, nada tão impróprio e inadmissível quanto uma instituição republicana, do porte e da respeitabilidade do TSE, firmar esse tipo de convênio, dispondo-se a fornecer meios de acesso a dados de todos os cidadãos brasileiros detentores de títulos eleitorais isto é, todas as pessoas acima de 18 anos de idade, e parte dos jovens com 16 e 17 anos. Não apenas se estaria perpetrando uma violação ao princípio constitucional que protege a privacidade individual como também, para dizer o mínimo, estaria se desrespeitando até mesmo o Código do Consumidor, que não permite a venda, sem autorização, de dados pessoais que não sejam de interesse público exatamente o que estava prestes a acontecer.
O Serasa é uma empresa privada cujos faturamento e lucro advêm da venda de informações que reúne em seus bancos de dados e que se destinam a proteger instituições de crédito e estabelecimentos comerciais em suas relações com clientes, tomadores de empréstimos ou compradores. Ora, é inconcebível que os milhões de brasileiros que ainda recentemente foram obrigados a enfrentar filas gigantescas para atualizar seus cadastros eleitorais os vissem agora, sem sua autorização, colocados à disposição graciosa para frutificar em lucro alheio.
Como bem lembrou o vice-presidente do TSE, ministro Marco Aurélio, o cadastro do TSE é sigiloso e o acesso a ele só é permitido quando sob autorização judicial. Portanto, não é cabível que um simples instrumento administrativo, que nem mesmo passou pelo crivo da cúpula da Justiça Eleitoral, seja o caminho correto para o fornecimento a terceiros de seus arquivos. Tanto quanto uma agressão à lei, estava implícita também uma agressão à ética pública.
Não deixa de ser irônico que, no momento em que diversos países, incluindo o Brasil, deixam clara sua indignação com a espionagem norte-americana que vasculhava dados de internautas globalmente, um ente público brasileiro estivesse prestes a entregar, praticamente de mão beijada, os dados de dezenas de milhões de cidadãos à iniciativa privada. Isso só indica que o desprezo de burocratas em relação à privacidade alheia não é exclusividade de país nenhum.
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