Há 122 anos a monarquia foi formalmente extinta no Brasil. Contudo, a República tem chegado aos pouquinhos. A criação do Conselho Nacional de Justiça foi um passo na caminhada em direção à República. Porém o Brasil antigo, aristocrático, resiste. Esse é o cenário da liça entre as associações de magistrados e a ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça. À falta de argumentos republicanos, quem tem o arcaísmo como projeto exacerba um ou outro exagero de linguagem da ministra, conhecida pela honradez e pelo aríete verbal usado para derrubar os castelos ocultos sob a toga. A batalha entre Aristocracia e República se expressa neste momento na discussão sobre competência originária ou subsidiária da Corregedoria Nacional para investigar condutas indecorosas de magistrados. Em linguagem corrente: o corregedor nacional pode investigar e levar juízes a julgamento no CNJ sem esperar que as corregedorias locais se mexam?

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Para compreender a razão da existência do Conselho Nacional de Justiça é preciso combinar interpretação política e jurídica. Não basta ler as normas da Constituição Federal sobre o tema; insta contextualizá-las na história do Brasil, especialmente para tornar claro que o Judiciário como poder e serviço estava alienado das necessidades do povo. A Constituição motivou milhões de pessoas a reclamar direitos nas relações particulares e públicas. Cidadania do consumidor, contribuinte, dos trabalhadores, mulheres, aposentados. A massa de demandas encontrou estrutura judicial sonolenta, concebida quando o Brasil era rural e as lides tinham solução nos mecanismos de controle social típicos de sociedades agrárias e arcaicas. O Brasil moderno, rico, desigual, vigoroso na economia e democracia, carece de aparato judicial que tenha disciplina operacional e ética; seja eficaz e honesto.

A falta de centro apto a produzir harmonia administrativa e correicional se fazia sentir com intensidade quando os acalorados debates sobre o controle externo do Judiciário consumiam inteligências e emoções. Professores, alunos, operadores jurídicos, políticos, gente do povo, opinavam sobre a necessidade ou não de órgão competente para harmonizar as rotinas administrativas, gerando economia de escala, e para correicionar situações de nepotismo, desídia, corrupção que permaneciam presentes a despeito das boas intenções dos constituintes de 1988. O Brasil velho, semifeudal, resistia nas mulharas corporativas do Judiciário, atrasando o passo do Brasil novo, republicano, democrático, ávido por justiça para todos. O Conselho Nacional de Justiça nasceu para produzir simetria entre a atuação funcional e ética dos magistrados e as expectativas da sociedade.

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O §4.º do art. 103-B da Constituição Federal preceitua que compete ao Conselho o controle do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. No inciso III, do mesmo parágrafo, há o preceito de que ao Conselho compete receber e conhecer reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais. Está-se diante de competência administrativa, não jurisdicional. O Conselho, nunca é demais dizer, é órgão administrativo e suas decisões, como a de qualquer autoridade administrativa, estão susceptíveis ao crivo judicial.

Caminhando em direção à afirmação positiva de que a Corregedoria Nacional de Justiça tem competência originária para receber e conhecer reclamações contra membros ou órgãos do Judiciário, se deve dizer que a administração não tem a última palavra. A decisão jurisdicional é a palavra derradeira e por isso ela tem natureza de ato de poder político. Só ela cria fato consumado, imutável. Por isso o processo decisório judicial é escalonado; a garantia da não supressão de instância visa a aumentar a riqueza do debate para que não haja decisões judiciais incontrastáveis tomadas em situação de pobreza hermenêutica. Assim, os graus de jurisdição integram a garantia fundamental do devido processo legal. A autoridade administrativa atua com poder infinitamente mais reduzido que a judicial. Particularmente no caso do CNJ os efeitos são interna corporis, limitados ao corpo de magistrados e funcionários. Por força desse nanismo diante da potência judicial não há óbice lógico ou político a que a autoridade administrativa superior chame para si funções ordinariamente atribuídas a subordinados. Para fins de exemplo: um general tem o poder de assumir pessoalmente a função de um soldado de infantaria; o superior não precisa esperar que as autoridades intermediárias decidam fazer ou não fazer o combate.

A autoridade administrativa do Conselho Nacional de Justiça o investe do poder hierárquico do qual decorrem, na lição de Hely Lopes Meirelles, o poder de delegar e avocar atribuições. O CNJ pode chamar para si funções originalmente delegadas a subordinado, com todas as consequências dessa substituição, inclusive o deslocamento da competência judicial para quem se sinta prejudicado pela decisão.

O ideal a ser atingido é de pleno funcionamento das instâncias correicionais dos tribunais brasileiros, tornando a atuação do Conselho Nacional de Justiça evento raro. Porém, enquanto não se atinge esse momento, no qual as mazelas de conduta dos poucos magistrados que desonram a toga sejam exaustivamente investigadas e exemplarmente punidas, a situação de exceção reclama a presença quase diuturna da atuação correicional direta, originária, do Conselho Nacional de Justiça.