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Editorial

Proibição de VPNs para acessar X confirma a esbórnia judicial brasileira

Alexandre de Moraes
Alexandre de Moraes proibiu que brasileiros usem VPNs para acessar X, embora os cidadãos comuns não sejam parte no processo que levou ao bloqueio da rede social. (Foto: Antonio Augusto/STF)

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Devido processo legal, império da lei, liberdades e garantias democráticas, separação de poderes, tudo isso já virou ficção no Brasil há muito tempo. Mas na sexta-feira, data em que Alexandre de Moraes bloqueou a rede social X em todo o país, estamos oficialmente em um novo estágio, o da esbórnia jurídica em que a única regra vigente é a vontade de um ministro do STF. Moraes, que já se julgava a encarnação infalível da democracia, agora pressupõe também que suas ordens dispensam todas as formalidades legais para serem obedecidas por toda a nação.

Falamos daquela parte da decisão monocrática que serve para punir não o X, ou Elon Musk, por terem desobedecido a uma ordem manifestamente injusta, mas toda a população brasileira – não apenas as dezenas de milhões que têm contas na rede social, mas todos os demais, que podem ler o que é publicado ali. Não contente em ordenar a suspensão da rede social, Moraes proibiu todos os brasileiros, sob pena de pagar a exorbitante multa de R$ 50 mil diários, de usar VPNs (softwares que camuflam a localização física de um dispositivo) para acessar o X ou fazer publicações na rede.

Uma obviedade gritante em qualquer processo judicial é a necessidade de o alvo da decisão, intimação ou liminar ser judicialmente notificado e tomar ciência da decisão, para que só então ela passe a valer e eventuais prazos para recursos comecem a correr. Por acaso os pouco mais de 210 milhões de brasileiros receberão, todos, a visita de um oficial de Justiça que os avisará da proibição de acessar o X com uma VPN? Ou agora essa necessidade está dispensada, como se a simples canetada de Moraes tivesse o poder de fazer um país inteiro tomar ciência formal de suas determinações? Nem mesmo os ditadores mais totalitários tiveram essa pretensão de um canal direto entre eles e a mente da totalidade de seus súditos, mas a megalomania de Moraes é tanta que o ministro se julga o centro das atenções da nação, de uma forma tal que qualquer ato seu chegaria necessariamente e imediatamente ao conhecimento de todos os brasileiros, onde quer que estejam, o que quer que façam.

Um ministro do STF impõe a todos os brasileiros uma “obrigação de não fazer”; pretende que todos sigam uma decisão judicial da qual não foram notificados, em um processo no qual não são partes; e ainda diz que devem fazê-lo imediatamente

A pretensão, aliás, não é apenas de obediência generalizada, mas de obediência generalizada e imediata. Suponhamos, por um instante, que o Congresso Nacional aprovasse uma lei determinando exatamente o que Moraes determinou. O mais provável é que tal lei fosse derrubada no instante seguinte por qualquer juiz sensato em um controle difuso de constitucionalidade, tantas são as garantias democráticas que tal proibição violaria, como a liberdade de expressão e o direito à informação. Mas, supondo que não houvesse tais juízes sensatos e a lei permanecesse em pé, haveria ao menos um período, chamado vacatio legis, para que a população tomasse conhecimento da nova regra e se preparasse até que ela entrasse em vigor. Isso também foi eliminado sumariamente por Moraes, e os brasileiros têm de obedecê-lo, mesmo sem o aviso formal da decisão.

Tudo isso, ressalte-se, sem que os 210 milhões de brasileiros sejam sequer parte no processo aberto contra o X e contra Musk. É imperativo, aqui, tomar consciência da aberração completa que está em curso. Não estamos, aqui, no terreno da (importante) discussão filosófica sobre a desobediência civil ou a moralidade de se cumprir ordens injustas, ou sobre o exemplo de Gandhi, Rosa Parks, Martin Luther King ou dos holandeses que esconderam a família de Anne Frank. A questão é de outra natureza: como esperar que milhões de pessoas obedeçam a uma determinação judicial da qual não foram notificadas, em um processo no qual não são partes? Mas é exatamente isso que Moraes espera. É a abolição total de regras mínimas de segurança processual, um retrocesso de séculos – é a esbórnia.

E o paradoxal é o contraste imediato, a contradição gritante entre essa aberração e uma outra decisão que Moraes havia acabado de tomar no mesmíssimo caso. Na madrugada de sexta-feira, horas antes de Moraes determinar a suspensão do X, ao analisar um recurso da rede social de Elon Musk contra as ordens de censura de perfis, o ministro votou pelo não conhecimento do recurso – ou seja, por nem sequer examinar o seu mérito. O seu argumento? Afirmou que o X não era parte no processo, mas mero executor das ordens de remoção; as partes eram apenas os donos dos perfis censurados, e apenas eles poderiam recorrer. Se é assim, como é possível que Moraes imponha, em uma ação na qual a parte é o X, uma obrigação a todos os brasileiros – não só os que têm contas na rede, mas todos os demais, que podem ler o que é publicado ali –, que não estão arrolados no processo? É possível porque, no Brasil, os códigos processuais foram abolidos; o que vale é apenas a vontade de Moraes, que usa os códigos quando convém e os descarta quando não convém.

Em resumo, temos o caos completo, em que um ministro do STF impõe a todos os brasileiros uma “obrigação de não fazer”, o que só poderia ocorrer por lei, como diz o inciso II do artigo 5.º da Constituição (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”); pretende que todos sigam uma decisão judicial da qual não foram notificados, em um processo no qual não são partes; e ainda diz que devem fazê-lo imediatamente. São tantos absurdos que só mesmo a doença profunda que acomete o Brasil contemporâneo explica a apatia diante dessa determinação. Enquanto uns se escondem atrás de um hiperlegalismo que prega obediência cega a qualquer absurdo que venha de um tribunal, vozes que um dia já foram muito mais enfáticas se encolhem.

A Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo, só faltou se desculpar com Moraes por pedir “esclarecimentos” sobre a multa pelo uso de VPNs – a proibição nem sequer foi questionada – em uma nota tíbia. A entidade que já esteve na linha de frente da luta pela democracia e pelos direitos dos brasileiros poderia e deveria ser muito mais enfática em um momento como este, e sua fraqueza só não é vergonha completa porque muitos outros, incluindo boa parte da imprensa, dos formadores de opinião e da classe política, escolheu o silêncio ou, pior ainda, o apoio a Moraes.

A anomalia é tamanha que, depois da proibição de Moraes, até o Tribunal Superior Eleitoral fez publicações no X, sabe-se lá como – publicações que só atingirão seu objetivo se os brasileiros recorrerem à desobediência. O ministro e seus sequazes estão atentos a isso? Ou resolverão monitorar todos os brasileiros (provavelmente tendo de recorrer ao mesmo expediente proibido por Moraes)? A loucura totalitária está instalada e a nação inteira deveria, neste momento, estar se levantando contra o desmando. Os próximos dias mostrarão se a sociedade realmente quer viver em uma democracia ou se aceitará a submissão à esbórnia judicial em que vale tudo, menos a lei.

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