“Guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força”, repetia o Estado totalitário descrito em 1984, de George Orwell, demonstrando a importância do controle estatal sobre os discursos e a linguagem. No Brasil lulopetista, teremos também “censura é liberdade de expressão” e “perseguição é democracia”, a julgar por dois novos órgãos da estrutura estatal criados por decretos publicados já no primeiro dia do governo Lula, um na Advocacia-Geral da União e outro na Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Ambos prometem ser uma valiosa ajuda ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em seu esforço para destruir a liberdade de expressão no Brasil.
A Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, criada dentro da AGU, tem entre suas funções “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”. Já o Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão, na Secom, deve “propor e articular políticas públicas para promoção da liberdade de expressão, do acesso à informação e de enfrentamento à desinformação e ao discurso de ódio na internet, em articulação com o Ministério da Justiça e Segurança Pública”. Os termos-chave, aqui, são “desinformação” e “discurso de ódio”, categorias suficientemente amplas para incluir, no fim das contas, qualquer crítica ao governo federal, a seus integrantes e às políticas que eles pretendam implantar.
As novas estruturas estatais poderão definir a seu bel-prazer o que é “desinformação” e “discurso de ódio”. Pior ainda: terão como lançar o peso do Estado contra qualquer um que desagradar o governo
O uso de um conceito aberto é proposital, pois fica sujeito às preferências de quem manda. Assim como hoje o Supremo já decide como bem entender o que é “fake news”, o que é “ato antidemocrático” e o que é “ataque às instituições” – por exemplo, incluindo neste último conceito qualquer crítica mais contundente, ainda que legítima, às ações dos ministros do STF –, as novas estruturas estatais poderão definir a seu bel-prazer o que é “desinformação” e “discurso de ódio”. Pior ainda: terão como lançar o peso do Estado contra qualquer um que desagradar o governo, ainda que não exista no ordenamento jurídico brasileiro crime de “desinformação”, como também não existe o de “fake news”.
Usemos como exemplo uma política pública real, e que o atual governo já manifestou a intenção de retomar. O Mais Médicos de Dilma Rousseff não passava de um truque para financiar a ditadura cubana usando como pretexto a falta de profissionais de saúde em determinados rincões do país – o caráter de negociata já era óbvio à época, com a retenção dos salários dos médicos cubanos, e ficou ainda mais evidente anos depois, com a divulgação de documentos e de áudios de reuniões internas do governo Dilma. Mesmo assim, se esses novos órgãos da AGU e da Secom já existissem em 2013, quem dissesse que o Mais Médicos era um artifício para bancar os comunistas cubanos poderia muito bem se ver em maus lençóis por propagar o que seria classificado como “desinformação sobre políticas públicas”; o Estado poderia lançar o peso de suas estruturas contra os críticos, com “medidas judiciais e extrajudiciais”, ainda que eles não tivessem violado nenhum artigo do Código Penal.
Como explicou à Gazeta do Povo o advogado, doutor em Direito Civil e professor Maurício Bunazar, a criação de estruturas de Estado para perseguir o que o próprio Estado considerar “desinformação” e “discurso de ódio” inverte completamente o que deveria ser uma relação saudável entre cidadão e governo, pautada pelo respeito amplo à liberdade de expressão. Citando o ex-ministro do STF Celso de Mello, Buzanar lembrou que é da natureza da autoridade estar mais sujeita a críticas, inclusive a críticas bastante contundentes; o limite está apenas naquilo que é efetivamente criminalizado pela lei penal (por exemplo, a calúnia, a injúria ou a difamação), não em conceitos abertos e sujeitos a definições mutáveis e arbitrárias conforme a conveniência, como “desinformação” ou “discurso de ódio”.
O Poder Judiciário – especialmente por meio do STF e do TSE – já havia se erigido como o equivalente tupiniquim do Ministério da Verdade da distopia orwelliana; agora, ganha companhia do Poder Executivo. Agirão em sintonia, jamais em concorrência, a julgar por todos os atos recentes em que apenas um lado do espectro político-ideológico tem sido perseguido, enquanto ao outro (agora transformado em governo) se faculta tudo, inclusive a mentira descarada. Tudo, sempre, em nome da “democracia” e da “promoção da liberdade de expressão”, termos cada vez mais sem sentido num Brasil em que, mais cedo ou mais tarde, será proibido criticar.
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