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Editorial

Razão e sensibilidade na Saldanha Marinho

A máxima "faça você mesmo" é um santo remédio para devolver saúde às cidades. Difícil quem não tenha algo a lamentar: Violência. Trânsito. Pichação. Som alto. Lixo. Indelicadeza. Calçamento. Falta de espaços de lazer... A lista é uma constelação inteira e, a depender do ponto de vista, isso é muito bom. Repetindo o que escreveu o historiador Giulio Carlo Argan – "a cidade é a mais bela invenção do homem" –, quanto mais desafios, mais se reinventa a urbe, para que ela cumpra seu destino. A cidade é sede do conhecimento, da troca, o local que permite estar com pessoas com as quais não conviveríamos se morássemos numa roça distante. Grande invenção, de fato.

Há maneiras mais técnicas de dizer isso, é claro. O urbanista Mike Davis fala em "crescimento sem desenvolvimento", que traduz perfeitamente a esquizofrenia das urbes de hoje. As cidades aumentam, mas não crescem, o que pode se tornar a maior das tragédias. Viver num desses centros e não ter acesso às boas escolas e bibliotecas, mundo do trabalho e convivência com outras pessoas, é como estar na beira da praia e não poder entrar no mar. Assim se sentem muitos moradores – olham a rua e a praça, mas, assim que se aproximam, elas desaparecem de sua vista, transformando-se em outra coisa.

A resposta a esse dilema é simples: garantir o que é próprio da urbe. É preciso aplicar o que está escrito no Estatuto da Cidade, um instrumento moderno, mas que parece fadado a amarelar na pilha de leis esquecidas. Mas as prefeituras e o estado não podem, sozinhos, arcar com uma responsabilidade que está nas pernas do cidadão. Já está ficando manjada, por exemplo, a figura que reclama todas as obrigações dos gestores, mas que não faz sua parte – não ocupa o espaço público, não bota para correr os que insistem em privatizá-lo a seu bel-prazer, desprezam os ditames do coletivo e da comunidade.

Na semana passada, a Gazeta do Povo publicou uma reportagem que bem ilustra o atual estado das coisas. "Para acabar com o ‘carma’ da Saldanha" relata, com cores de crônica, o caso da "rua amaldiçoada" da cidade. No passado, endereço de açougues, funerárias e o que mais, a "paralelepípeda" e estreita Saldanha Marinho se viu condenada à vocação de atalho íngreme, escuro, úmido e perigoso. Mas, de uns tempos para cá, por obra e graça de gente como a gente, a Saldanha Marinho deu um corridão nos maus agouros. A rua "que sai de trás da Catedral", como se diz, está dando "lições de urbanismo aplicado". A reportagem cita as rodas de viola no Sebo Acervo e outros endereços locais. São "atores". Promovem cultura, mas não eventos. Importa-lhes garantir a convivência – o que há de mais urbano. Mais que isso: o "urbanismo na prática" da Saldanha Marinho trouxe uma aplicação do Estatuto da Cidade. A Uninter usa seis prédios antigos no Centro da cidade, um deles na Saldanha Marinho. São duas as lições: a de que é falta de juízo deixar toda essa estrutura ao sabor dos cupins e das goteiras. E de que jovem continua sendo a maior garantia de saúde urbana. Onde tem jovem tem comida barata, gente na rua, música, cultura.

Ao ocupar prédios como nosso "palácio" Garcez e o antigo Colégio Divina Providência, a instituição de ensino apontou uma saída para a decadência dos bairros antigos. De quebra, ajudou a melhorar o trânsito e o comércio. É um exemplo. Há outros. Inclusive maus, mas citá-los aqui seria ferir a sensibilidade de grupos da sociedade que preferem desapropriar, erguer, descaracterizar, na contramão do que ensinam mestres da arquitetura como o italiano Renzo Piano. O próprio poder público entra nessa lista negra. Nem prefeitura nem estado têm se mostrado muito pródigos em se adaptar aos bons espaços existentes. Basta pensar nas dezenas de sociedades étnicas e seus espaços maravilhosos. Ou nas escolas públicas fechadas à noite, quando poderiam ser um atrativo para a população estar no Centro.

Entramos na fase do desmanche, ou da reciclagem de gosto duvidoso, aquela que "passa conversa" de que uma fachada antiga preservada resolve o problema da memória, da convivência e da saúde urbana. Conversa – pode ser prática predatória do mesmo jeito. Para falar desse assunto sem traumas, boa pedida é ir de mansinho, sem alarde, até a Saldanha. Ali a urbe está se reiventando. Pessoas de razão e sensibilidade em geral vão adorar.

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