A palavra da moda é “reconstrução”. Está na boca de dez entre dez integrantes do novo governo, com uma boa dose de exagero marqueteiro, como se o antecessor de Lula houvesse deixado uma terra arrasada que o petismo teria de refazer do zero (a realidade se parece mais com o inverso disso, com um dos grandes acertos da gestão de Jair Bolsonaro, a Secretaria de Alfabetização do MEC, sendo extinta no primeiro dia útil do ano). Mas existe algo no Brasil de hoje que efetivamente está destruído e precisa ser reconstruído, sem exagero algum; uma prioridade que é do país como um todo, independentemente do governo: a liberdade de expressão.
Lula subiu a rampa; o apocalipse golpista e a subsequente ditadura que a esquerda e seus aliados na opinião pública previam desde antes de Bolsonaro vencer a eleição de 2018 não se concretizaram. O tal “retorno à normalidade democrática” de que tanto falam os petistas e seus apoiadores – e pouco importa se a expressão faz sentido ou não – não está completo sem a recuperação de uma garantia constitucional que é um dos pilares da democracia em qualquer lugar do mundo. Com os ânimos apaziguados e os medos – os fundados e os infundados – dissipados, é hora de o país todo colocar a mão na consciência e refletir sobre o que foi feito da liberdade de expressão.
Se existe algo no Brasil de hoje que efetivamente está destruído e precisa ser reconstruído, sem exagero algum, este algo é a liberdade de expressão
Que essa liberdade não é absoluta é algo que todos sabemos, e que esta Gazeta vem repetindo há muito; mas o que ocorre no Brasil desde a instauração do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal, passando pela CPI da Covid e pelo recente processo eleitoral, é de outra natureza. Inúmeros brasileiros têm sofrido censura e medidas persecutórias drásticas como a quebra de sigilos e até mesmo ordens de prisão não por abusos reais da liberdade de expressão; afinal, a maior parte dessas pessoas não cometeu nenhum crime previsto no Código Penal; nem crimes contra a honra, nem os crimes contra o Estado Democrático de Direito recentemente tipificados, nem qualquer outro existente na lei penal, como a incitação à prática de crime. O que elas fizeram foi questionar, muitas vezes com argumentos bastante pertinentes, supostos “consensos” sobre a pandemia; fazer perguntas incômodas sobre o processo eletrônico usado para as eleições brasileiras; trocar opiniões políticas privadamente em grupos de WhatsApp; fazer conjecturas sobre a possibilidade legal de determinada ação; criticar a ação de poderes da República quando passam do ponto ou invadem atribuições de outros poderes; afirmar verdades inconvenientes sobre a biografia ou as opiniões daquele que acaba de se tornar o presidente da República.
É esse tipo de manifestação pública que vem levando brasileiros a perder completamente o acesso a seus perfis em mídias sociais, sendo impedidos de emitir opiniões sobre qualquer outro tema, e que levou veículos de imprensa e produtores de conteúdo a ter seu trabalho impedido de circular por meio da censura, às vezes de forma prévia, como no caso de um documentário da Brasil Paralelo. Tudo isso, como se não bastasse, é feito ao arrepio de todas as normas processuais brasileiras: o princípio do juiz natural é ignorado, o devido processo legal é abolido, até mesmo o acesso aos autos por parte dos advogados dos alvos de perseguição – muitos dos quais nem sabem por qual crime são investigados ou acusados – é dificultado.
É preciso que o Brasil finalmente se dê conta da gravidade de tudo isso. Não estamos falando de um trabalho que começou dentro da moldura constitucional brasileira e, em algum momento, saiu dos trilhos; estamos falando de todo um processo que já começou abusivo – e, quando isso ocorre, a tendência é que o abuso apenas se intensifique, como de fato se intensificou. Não é normal perseguir empresários por trocar opiniões privadamente, sem nenhum tipo de conspiração ou incitação a crimes contra a democracia; não é normal proibir pessoas e jornais de mencionar a fartamente documentada aliança que une Lula e o ditador nicaraguense Daniel Ortega; não é normal classificar como “ataque” uma crítica legítima ao Supremo e usá-la para banir alguém de redes como o Twitter, o Facebook ou o Instagram.
Mas por que, então, tantos brasileiros, incluindo formadores de opinião e representantes da sociedade civil organizada, toleraram, aceitaram ou até incentivaram e aplaudiram tais ações? Não descartamos que possa haver aqueles que estavam plenamente convencidos de que elas eram não só legítimas, mas necessárias; no entanto, cremos não estar cometendo injustiça ao afirmar que, em muitos casos, falou mais alto a aversão a Bolsonaro que o amor pela democracia. Para esses, havia um inimigo a combater e preparar a omelete de sua derrota exigia fechar os olhos para os ovos quebrados. Mas o convite é para todos: aos sinceramente convencidos da legalidade das perseguições, que se aprofundem e descubram o verdadeiro sentido da liberdade de expressão; aos ideologicamente motivados, que, passada a disputa eleitoral, reflitam se os fins realmente justificam os meios.
E, se este processo de retomada de consciência sobre as reais dimensões da liberdade de expressão precisa ser um evento que mobilize toda a sociedade, nada mais importante que uma ocasião de dar-lhe publicidade total. A CPI do Abuso de Autoridade, que deve ser novamente proposta na Câmara dos Deputados assim que a nova legislatura for empossada, é a instância ideal para que isso ocorra. Uma investigação honesta sobre todos os limites que foram ultrapassados nos últimos anos tem tudo para iluminar novamente uma nação hoje dominada pela escuridão da censura e do “apagão” da liberdade de expressão.
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