O relator Gilmar Mendes foi favorável à possibilidade de reeleição de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre para as presidências da Câmara e do Senado em 2021.| Foto: Arquivo STF
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Há muitos trechos da Constituição que, por estarem redigidos de forma extremamente cristalina, não admitem nem mesmo possibilidade de interpretações divergentes. Um desses casos é o do parágrafo 4.º do artigo 57: “Cada uma das casas [Câmara e Senado] reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1.º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”. Está bastante claro ali que, na eleição seguinte àquela ocorrida no primeiro ano de cada legislatura, nenhum membro das Mesas Diretoras pode ser reeleito para o mesmo posto.

Portanto, diante dos questionamentos sobre a possibilidade de o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) e o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) se reelegem para as presidências de suas casas legislativas em 2021, terceiro ano da atual legislatura, a resposta de qualquer um que leia o texto constitucional é um inequívoco “não”. Mais enfático ainda deveria ser o “não” daqueles a quem foi confiado o trabalho de guardar a Constituição: os ministros do Supremo Tribunal Federal. Mas não é o que começou a ocorrer nesta sexta-feira, dia 4. Liderados pelo relator Gilmar Mendes, outros quatro ministros (Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Kassio Nunes Marques) consideraram essa reeleição possível, em flagrante contradição com o texto constitucional. Uma única exceção, bastante pífia, foi levantada pelo novato Nunes Marques, para quem Maia não poderia se reeleger por já ter se beneficiado com a reeleição em 2019. Até a noite de sexta-feira, apenas Marco Aurélio Mello e Cármen Lúcia tinham sido contrários, defendendo a Constituição. Falta, portanto, um voto para permitir a candidatura de Alcolumbre, que trabalha abertamente por isso, e dois para Maia, que até o momento desconversa sobre o tema – os quatro ministros que ainda não votaram têm até o dia 11 para fazê-lo.

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Se parlamentares vivem recorrendo ao STF para resolver suas desavenças, é porque sabem que os ministros sempre estarão dispostos a atropelar a Constituição em nome de conveniências políticas

Não há argumento possível para defender uma possibilidade que a Constituição veta de forma tão explícita. A alegação de que a reeleição é assunto interno de cada casa do Congresso, que pode muito bem decidir como proceder, é desmentida pelo simples fato de a regra da reeleição estar expressa no texto constitucional – situação diferente, por exemplo, é a votação secreta para o comando das casas, que não está na Constituição, e sim nos regimentos internos. A defesa da reeleição como mera questão interna corporis do Legislativo, aliás, entra em choque com a própria pretensão do relator Gilmar Mendes de determinar o limite máximo de uma reeleição, seja dentro da mesma legislatura, seja na passagem de uma legislatura para outra; afinal, se o tema é de competência exclusiva do Congresso, não caberia a ministro do Supremo estabelecer regra alguma, mas apenas afirmar que o Judiciário não pode dizer nada sobre a questão e que são os parlamentares que devem resolver o problema.

Da maneira como o texto constitucional está escrito, só há uma forma de permitir reeleições dentro de uma mesma legislatura: uma alteração constitucional que ou inserisse essa possibilidade no artigo 57, ou que removesse qualquer menção a reeleições, transformando o assunto, de fato, em questão interna do Senado e da Câmara, a ser resolvida dentro dos respectivos regimentos internos (que, aliás, também proíbem a reeleição dentro da mesma legislatura) e afastando-a da alçada do Judiciário. Não é o que está ocorrendo: Mendes resolveu reescrever ele mesmo a regra prevista no artigo 57; ele e pelo menos quatro colegas de corte, mais uma vez, tomaram para si as prerrogativas do Congresso, o único responsável por votar e aprovar PECs.

Em seu discurso de posse como presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux queixou-se do fato de que “alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário” – em outras palavras, afirmou que não é nada conveniente que os políticos costumeiramente recorram ao STF para resolver suas divergências internas. Mas há uma razão para que essa prática tenha se tornado tão corriqueira: há muito tempo o Supremo já deu mostras de que está disposto a atropelar o texto constitucional em nome de conveniências políticas.

Foi assim em 2016, quando Lewandowski, então presidente da corte, ignorou o parágrafo único do artigo 52 para permitir que Dilma Rousseff sofresse o impeachment sem perder seus direitos políticos. Tem sido assim nos casos de afastamento de parlamentares fora das condições estabelecidas nos artigos 53 e 55. E, agora, tudo indica que os ministros farão o mesmo com o artigo 57. Em todos esses casos, trata-se de textos bastante claros, e não nos parece que nem parlamentares nem ministros tenham algum tipo de deficiência cognitiva que os impeça de capturar o sentido das palavras ali escritas. Se políticos acionam o Supremo para que os ministros “desdigam” o que eles sabem estar explícito na Carta Magna, e se os ministros concordam com gosto em fazê-lo, é apenas porque todos se sentem donos da Constituição, pairando acima dela em vez de se julgarem sujeitos à Lei Maior.

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