Enquanto milhões de pessoas físicas estão tendo seu nome limpo na praça novamente graças ao Desenrola – que não anula as pequenas dívidas, mas permite que o devedor volte a ter acesso facilitado a linhas de crédito –, muitos prefeitos e governadores Brasil afora estão de olho em algo parecido, um novo capítulo da infindável novela das dívidas que esses entes subnacionais contraem com garantia federal e não conseguem pagar depois. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que o governo enviará ao Congresso projeto de lei para mudar regras do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que oferece renegociação em troca de um pacote de medidas de ajuste fiscal, como parte do que está sendo chamado de Novo Ciclo de Cooperação Federativa.
O RRF, no modelo atual, já é bastante amigável para com os estados que conseguem comprovar o estado caótico de suas finanças, pois primeiro as restrições são levantadas e só depois as medidas de ajuste devem começar a ser implementadas. Isso permitiu que estados como o Rio de Janeiro tratassem o RRF com o mais absoluto desdém, adiando até onde foi possível a privatização da Cedae, a companhia estadual de saneamento, e chegando ao cúmulo de apresentar ao governo federal um plano que previa reajustes anuais para o funcionalismo estadual até 2030 – ou seja, elevando despesas em vez de cortá-las. À época, o governo fluminense baseou seu plano em perspectivas de elevação drástica das receitas, o que foi rejeitado tanto pelo Tesouro Nacional quanto pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que alegaram “premissas técnicas frágeis”. Mas isso foi no governo de Jair Bolsonaro; provavelmente o raciocínio seria facilmente acolhido agora, até porque o arcabouço fiscal petista em tramitação no Congresso parte da mesma premissa de desprezar o corte de gastos e contar com aumento na receita.
Não é preciso ser um gênio da economia ou da contabilidade para imaginar como acabará uma história em que bons gestores são incentivados a elevar gastos acima da inflação e maus gestores não terão de arcar com as consequências de seus atos
Estados e municípios tiveram, de fato, suas finanças chacoalhadas por medidas como a aprovação do piso salarial da enfermagem e, especialmente, a redução nas alíquotas de ICMS sobre energia elétrica e combustíveis, aprovada pelo Congresso em meados de 2022. Mas o que Haddad e Lula estão fazendo é usar uma necessidade real para promover não uma autêntica recuperação fiscal, mas sua agenda gastadora. Um governo federal hostil a privatizações, à racionalização de gastos com funcionalismo e a reformas previdenciárias obviamente não iria forçar estados e municípios a levar adiante essas medidas como condição para voltarem a se endividar. Não é preciso ser um gênio da economia ou da contabilidade para imaginar como acabará uma história em que bons gestores são incentivados a elevar gastos acima da inflação e maus gestores não terão de arcar com as consequências de seus atos.
Uma revisão do RRF que o torne mais leniente será a continuação do processo iniciado durante a primeira passagem do PT pelo Planalto. Naquela ocasião, inebriado com a euforia do pré-sal, dos megaeventos esportivos e de pacotes de ar ricamente embalados como o PAC, Lula incentivou estados e municípios a se endividarem, avalizando sem pestanejar todo tipo de dívida, mesmo para entes subnacionais com as notas mais baixas em capacidade de pagamento (Capag). A crença era a de que a economia seguiria crescendo sem parar e, com ela, a arrecadação, permitindo que as dívidas fossem devidamente quitadas. Esse terraplanismo econômico ruiu com a recessão na era Dilma, e o governo federal ficou com a conta bilionária da inadimplência de estados e municípios. As tentativas de recuperar parte do dinheiro, por meio de bloqueios nas transferências dos fundos de participação (FPE e FPM), foram todas bloqueadas pelo Supremo Tribunal Federal.
A grande chance que o Brasil teve de implantar um regime decente de recuperação fiscal de estados e municípios foi o Plano Mansueto, proposto em 2019 pelo então secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, e que invertia a lógica vigente até então: primeiro, as medidas de ajuste fiscal precisavam ser implantadas, e só depois ocorria a renegociação. Assim, prefeitos e governadores precisavam realmente mostrar serviço, e não apenas fazer promessas. O Plano Mansueto, no entanto, acabou destruído no Congresso, em parte sob o pretexto da necessidade de ajudar estados e municípios durante a pandemia. Os princípios que o norteavam foram esquecidos, substituídos pelo atual RRF, que por sua vez será ainda mais fragilizado, premiando a irresponsabilidade e, como em tantos outros casos, zombando de quem procurou fazer a coisa certa.