O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, defendeu na segunda-feira, dia 13, durante evento realizado pela Fundação Getulio Vargas, uma regulamentação mais rígida da atuação das Big Techs no Brasil. “Temos que mudar a forma jurídica de responsabilização de quem é o detentor das redes. Não é possível ainda hoje que as grandes plataformas sejam consideradas empresas de tecnologia. Elas são também empresas de comunicação, empresas de publicidade”, afirmou, acrescentando que “o que você não pode fazer na vida real, não poderia fazer escondido covardemente nas redes sociais”.
Ignoremos, por um momento, o fato de termos um magistrado falando “fora dos autos”, com a intenção de influenciar a formulação de políticas públicas; ignoremos, ainda, o fato de este magistrado específico ter uma atuação que, intencionalmente ou não, vem destruindo a liberdade de expressão no Brasil ao longo dos últimos anos. O fato é que há pontos bastante verdadeiros na fala de Moraes, embora ela apresente um quadro bastante incompleto e também traga embutidos riscos muito graves, e que o próprio ministro deixou subentendidos em sua participação no evento da FGV.
Quando afirma que “as grandes plataformas (...) são também empresas de comunicação, empresas de publicidade”, Moraes descreve bem a realidade brasileira. A partir do momento em que as Big Techs passam, por exemplo, a controlar quem publica e o que pode ser publicado, por meio da remoção de perfis ou textos específicos por conta própria, elas se comportam como “editores”, ou publishers. A alternativa é se portar como “plataforma”, de forma neutra, moderando apenas os conteúdos que firam explicitamente a lei (por exemplo, propagando racismo ou pedofilia, para usar um exemplo dado por Moraes na FGV) ou que sejam alvo de decisão judicial. Essa distinção tem repercussões legais para as empresas: enquanto a neutralidade permite às plataformas ficarem isentas de responsabilização pelo que se publica nelas, a não ser quando desobedecem ordens judiciais, os publishers podem responder por tudo que os usuários escrevem.
Se realizarmos a regulamentação das mídias sociais neste ambiente atual de completa confusão conceitual sobre a liberdade de expressão e sua importância como pilar da democracia, o desastre é certo
O mundo ideal para as Big Techs é aquele em que elas são formalmente caracterizadas como plataformas, mas na prática agem como publishers, pois escapam da responsabilização ao mesmo tempo em que se arrogam o poder de apagar o que bem entenderem, às vezes sem transparência nenhuma. E isso é exatamente o que acontece hoje, justificando a observação de Moraes. A discussão sobre a natureza das mídias sociais, sobre como cada uma dessas mídias quer se definir e como deve agir em conformidade com essa autodefinição, é importante e não nos parece que esteja sendo conduzida com a profundidade necessária nos vários projetos de lei que pretendem regulamentar o ambiente virtual. O próprio Moraes parece partir do pressuposto de que toda mídia social é ou deveria ser necessariamente um publisher, quando na verdade uma eventual regulamentação precisa dar liberdade às empresas para, se assim o desejarem, funcionarem como plataforma, desde que se comportem como tal, abrindo mão de critérios próprios de moderação e agindo com neutralidade. Mas, antes que isso seja feito, é preciso atacar um outro problema, ainda mais urgente.
O Brasil ainda não se recuperou do que chamamos, há dois anos e meio, de “apagão da liberdade de expressão” – pelo contrário, a confusão só cresceu, com todas as consequências profundamente deletérias para a democracia em nosso país. Setores importantes da sociedade civil organizada, da opinião pública e do Judiciário perderam completamente a capacidade (ou a vontade) de distinguir entre uma afirmação factual e a manifestação de opiniões e ideias (sensatas ou não, pouco importa), banalizando as expressões “fake news” e “desinformação”, que passam a designar não uma afirmação factual comprovadamente falsa, mas qualquer afirmação desagradável ou que contrarie consensos muitas vezes irreais ou forjados. Da mesma forma, outra expressão-muleta, “discurso de ódio”, serve para camuflar a incapacidade (ou a falta de vontade) de diferenciar o que é efetivamente crime de injúria do que é apenas a manifestação de uma crítica legítima, por exemplo a algum comportamento ou ideia.
E é aqui que mora o perigo quando Moraes pede uma regulamentação das mídias sociais de forma a combater “a desinformação, mentiras e discursos de ódio”. Em primeiro lugar, é preciso que os brasileiros recuperem com toda a urgência a clareza de critérios a respeito da natureza de cada tipo de discurso: identificar corretamente a afirmação factual, a opinião, a exposição de ideias, a crítica legítima a alguém ou algo, e o que realmente é uma afirmação criminosa, que atente contra a honra ou a dignidade humana. É preciso saber que não cabe ao Judiciário definir nem mesmo a sensatez de uma afirmação, muito menos a sua veracidade, e nem dar a palavra final sobre juízos de caráter científico, histórico ou artístico, por exemplo. É preciso estar convencido de que não existe “crime de opinião” da forma como ele vem sendo instituído no Brasil, e tampouco “crime de cogitação”.
Se não fizermos esse trabalho antes, e se realizarmos a regulamentação das mídias sociais neste ambiente atual de completa confusão conceitual sobre a liberdade de expressão e sua importância como pilar da democracia, o desastre é certo. Qualquer legislação gestada neste caldo, independentemente de quaisquer boas intenções de quem a elabore e a aprove, servirá apenas para dar legitimidade à perseguição ideológica e à censura que Big Techs e Judiciário, com o aplauso conivente de parte da sociedade brasileira, já promovem no Brasil ao arrepio da lei. Para bem discutir a regulamentação das Big Techs, é preciso primeiro deixar o apagão para trás e acender a luz para sabermos bem onde estamos e para onde queremos ir.