Uma investigação que o governo Lula quis impedir e, na impossibilidade de fazê-lo, conseguiu controlar só podia ter terminado da forma como terminou. Na terça-feira, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) apresentou seu relatório final da CPMI do 8 de Janeiro, aprovado no dia seguinte com o voto de 20 dos 32 integrantes da comissão mista, formada por deputados e senadores. Um dos acontecimentos políticos mais graves, se não o mais grave, da história política brasileira recente foi investigado de forma completamente enviesada, por um colegiado cujas conclusões já podiam ser antecipadas antes mesmo que as sessões tivessem começado.
Eliziane Gama defendeu, em seu relatório, a tese de que a invasão das sedes dos três poderes por uma multidão de vândalos foi uma verdadeira tentativa de golpe de Estado; e afirmou que não se tratou de algo motivado pelo calor do momento, mas uma tentativa “premeditada”, cujo “autor, seja intelectual, seja moral”, foi o ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele é o primeiro nome de uma longa lista de pedidos de indiciamento; a relatora incluiu nos pedidos uma série de militares e ex-militares, como os generais Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Paulo Sérgio de Oliveira, o almirante Almir Garnier Santos, e o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Bolsonaro); uma deputada federal, Carla Zambelli (PL-SP); o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha; o ex-ministro da Justiça Anderson Torres; o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques; e o empresário Meyer Nigri, um dos investigados por Alexandre de Moraes por “crime de pensamento” em um grupo de WhatsApp. Ao todo, são 61 nomes, e caberá ao Ministério Público Federal analisar se há elementos suficientes que justifiquem a abertura de investigação.
A parcialidade não se verifica apenas no que o relatório diz, mas também (e talvez ainda mais) no que deixa de dizer, e no que a CPMI deixou de fazer
O caráter puramente político do relatório fica nítido na linguagem usada pela relatora, pelo emprego bastante liberal da teoria do domínio do fato, e mesmo pela assertividade sem muito fundamento a respeito da própria natureza do 8 de janeiro. Os depoimentos dos réus que têm sido condenados arbitrariamente pelo STF, sem a menor preocupação com garantias básicas como a individualização da conduta, atestam que não havia uma intenção ampla, geral e irrestrita de ruptura institucional ou derrubada do governo empossado dias antes. É evidente que havia autênticos golpistas entre os invasores, gente realmente disposta a depor Lula ou fechar o Supremo, mas mesmo neste caso é preciso admitir que o 8 de janeiro seria, então, o que chamamos de “a tentativa de golpe mais desastrada da história mundial recente”: realizada sem apoio militar algum, em um dia no qual nenhuma autoridade que porventura se pretendesse derrubar estava no local dos ataques. Praticamente um “crime impossível”, como tem argumentado o ministro Nunes Marques, que costuma votar pela absolvição dos réus do 8 de janeiro no STF.
A parcialidade não se verifica apenas no que o relatório diz, mas também (e talvez ainda mais) no que deixa de dizer, e no que a CPMI deixou de fazer. Mais de mil requerimentos de depoimentos e dados foram negados ou ficaram pendentes, a maioria deles sabotada pela maioria governista na comissão. É especialmente escandalosa a blindagem do ministro da Justiça e aliado político de Eliziane Gama, o também maranhense Flávio Dino, que fez pouco da CPMI em diversas ocasiões, resistindo a fornecer imagens importantes gravadas pelo circuito interno do Palácio da Justiça e, por fim, afirmando sem enrubescer que elas haviam sido apagadas. A senadora isentou Dino de responsabilidade pela inação da Força Nacional, lançando toda a culpa sobre o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, apesar de o artigo 4.º do Decreto 5.289/2004 afirmar que a Força Nacional “poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo governador de Estado, do Distrito Federal ou de ministro de Estado” (destaque nosso). O desinteresse pela apuração de possíveis omissões foi apenas um dos pontos falhos do relatório, apontados por parlamentares da oposição.
Se o objetivo da CPMI era simplesmente incriminar Bolsonaro e, por associação, toda a direita brasileira, enquanto protegia possíveis omissos no atual governo, pode-se dizer que a comissão atingiu seu objetivo com louvor. Mas não foi para isso que a oposição pressionou pela criação da CPMI, e sim para realizar uma “investigação completa, rigorosa, sem deixar nenhum fio solto” (como afirmamos sete meses atrás), de um acontecimento sumamente grave, além de analisar a resposta das autoridades, inclusive do Judiciário, que tem se excedido em julgamentos e sentenças absurdas. Nada disso ocorreu, e provavelmente nunca se aviltou tanto a função de veículo para a voz da minoria que caracteriza as CPIs. O relatório de Eliziane Gama só produziu calor, em vez da luz de que o país precisava para entender o 8 de janeiro.