Diz-se que gosto, futebol e religião não se discutem. Arrisca ser a máxima mais repetida no território nacional apesar de uma solene frase-feita, regida por uma lógica escapista, conciliatória e dissimulada. Ao agir assim, ninguém fala, ninguém briga e tudo acaba como começou no mesmo lugar, abortando o processo intelectual.
Uma pena. Desde que a discussão sobre esses territórios tão íntimos, como a estética, a paixão e a crença, não ambicione impor um pensamento único, não existe nada mais humano, profundamente humano, do que defender um ponto de vista. É essa a matéria-prima da civilização, afinal.
Além do quê, reza a mais sã teologia, "o que não é assumido não é redimido". A frase, atribuída ao doutor da Igreja Gregório de Nissa, do século 4, foi decalcada por miríades de sábios senhoras e senhores pelos séculos dos séculos. É de direito: o recalque de assuntos como religião e gosto, para citar dois, cedo ou tarde tendem a se transformar no monstro da lagoa.
Não se brinca. Se estiverem às escondidas e silenciadas, a beleza e a fé, ao se manifestarem, podem ser confundidas com obscurantismo e ignorância, sem que o sejam de fato. É o que se está vendo no segundo turno, desde já, para a história, como o pleito em que a religião vem ganhando tinturas de autoritária, monstruosa e atrasada. Melhor chamá-la de subestimada e mudar a conversa de rumo.
Os que descartaram o discurso religioso e não são poucos agora se veem mudos ou aparvalhados diante de culturas gravadas no fundo da alma. Delas só se deve falar com tempo, respeito e sensibilidade. Sua liturgia não se rende à vulgaridade das tribunas, aos truques das rodadas televisivas nem às tiradas de efeito, especialidade dos políticos profissionais.
O que se tem visto é a afirmação rasteira da religião como espaço conservador, reacionário, uma cruzada puxando a nação para trás, rumo ao fundamentalismo. Ou como já se disse estaríamos próximos de ver por aqui a criação de partidos religiosos, a exemplo do que acontece no Oriente Médio, instalando o fanatismo.
Fato mesmo é que as relações entre religião e Estado no Brasil são umbilicais. Não se vai cortá-la com carimbo ou por decreto. As igrejas supriram aqui, por séculos, o Estado negligente, em especial na educação e na assistência social. E ainda o fazem. Não se fala em restabelecimento da democracia no país de tantas ditaduras sem citar os "padres de passeata", pastores como o presbiteriano Jaime Wright e o rabino Henry Sobel, com os quais dom Paulo Evaristo Arns desenvolveu o livro Brasil Nunca Mais.
A lista vai longe. Neste momento, algum salão de igreja está distribuindo comida, roupas e remédios, um religioso orienta uma família em via de dissolver, uma homilia está sendo preparada. Será ouvida por centenas de brasileiros e ouvi-la, para muitos, é sua única forma de participação na sociedade do conhecimento. Não raro, a melhor escola pública, a melhor ONG, a melhor unidade de ressocialização, tem o dedo de um homem ou mulher das igrejas.
O que se quer dizer com isso é que o Estado laico no Brasil é um conceito em formação, já que não pode moralmente prescindir da religião. E mesmo que o faça, não significa que os temas religiosos devam ficar entre quatro paredes, como nos tempos das grandes perseguições à fé, a exemplo do que fez o regime soviético. As igrejas são parceiras do país e não seus servos calados.
Infelizmente, o que sabe sobre a ação dos credos é calculado no olhômetro. Anos atrás, numa mensuração caseira, a Gazeta do Povo mostrou que os templos e paróquias faziam mais pela campanha da fome do que o próprio governo. Seria bom se essa falha estatística fosse suprida, transformando em dado os avanços sociais trazidos pelas confissões das mais ingênuas às teologicamente informadas.
Não se trata, claro, de um mar de rosas. Foi tocante saber, há dois anos, que um brilhante programa governamental de orientação sexual para adolescentes encontrou portas abertas em apenas três igrejas da capital paranaense. Enquanto isso, a contaminação pelo HIV entre nossas meninas só cresceu. Mas nada que tire o brilho das religiões. Elas são uma prova de que o Estado, sozinho, não pode dar conta de todas as camadas da cidadania. O Brasil passa pelos templos, pelas escolas, pelas redações de jornal, pelas redes sociais. Que se diga o que deve ser dito nos palanques e nos púlpitos. Religião se discute, com a mesma paixão do futebol e com o mesmo fascínio da beleza.
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