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Editorial

Errando o alvo

Reoneração da cesta básica para repasse de recursos ao Bolsa Família não é novidade
TCU sugeriu reonerar a cesta básica para levantar recursos e bancar o Renda Cidadã, mas ideia esbarra nas limitações do teto de gastos. (Foto: Daniel Castellano/Arquivo/Gazeta do Povo/Arquivo)

O governo federal ainda não encontrou um meio satisfatório para tirar do papel o Renda Cidadã, o programa de transferência de renda que deveria substituir o Bolsa Família e que, para acomodar o público-alvo desejado pelo presidente Jair Bolsonaro pagando um valor aceitável para o presidente, custaria algumas dezenas de bilhões de reais a mais que o Bolsa Família. Na semana passada, o Tribunal de Contas da União (TCU) fez uma proposta que pode até ser digna de discussão, e cujo efeito bate com o montante que o governo vem buscando, mas que, na prática, não resolve o problema do Renda Cidadã.

Segundo o TCU, ao reonerar os produtos da cesta básica, o governo conseguiria arrecadar algo em torno de R$ 30 bilhões anuais – se esse dinheiro fosse investido em ações de transferência de renda, dobraria os recursos hoje destinados ao Bolsa Família. O TCU argumenta que renúncias fiscais são menos eficazes que os programas de transferência, se o objetivo é reduzir a desigualdade. O ministro Raimundo Carneiro afirmou que, segundo dados de 2016, o Bolsa Família levou a uma redução de 1,7% na desigualdade de renda, contra 0,1% da desoneração dos itens da cesta básica. “A realocação dos recursos da desoneração da cesta básica para a transferência direta de renda pode gerar reduções nos índices de pobreza absoluta e de desigualdade de renda 5,4 vezes e 2,4 vezes maiores que os efeitos da desoneração da cesta básica, respectivamente”, acrescentou. Além disso, a desoneração beneficia os mais ricos ao incluir produtos que não fazem parte do cotidiano dos mais pobres, como caviar, salmão e queijo brie.

Se o governo quiser ter os cerca de R$ 20 bilhões adicionais para tirar do papel o Renda Cidadã, não há outra saída a não ser cortar o mesmo valor em outras despesas, independentemente de qualquer receita adicional que venha a ter

A discussão sobre a manutenção de isenções e subsídios tributários é válida. Todo ano, o governo deixa de arrecadar R$ 300 bilhões com essas renúncias – dinheiro que pode fazer falta para políticas públicas, mas que, por outro lado, fica nas mãos dos cidadãos e do setor produtivo. Entre esses benefícios, há aqueles com boas razões para existir e outros que não passam de benesses governamentais a setores que não necessariamente precisam deles, mas sabem gritar mais alto. Um pente-fino viria a calhar. Mas, ainda que da noite para o dia todas as renúncias fiscais fossem abolidas, nada disso resolveria o problema do Renda Cidadã.

Isso porque a dificuldade em viabilizar o programa decorre não de falta de arrecadação, mas do limite imposto pelo teto de gastos. Se o governo quiser ter os cerca de R$ 20 bilhões adicionais para tirar do papel o Renda Cidadã, não há outra saída a não ser cortar o mesmo valor em outras despesas, independentemente de qualquer receita adicional que venha a ter. Ainda que o fim das renúncias fiscais e uma série de privatizações muito bem-sucedidas colocassem centenas de bilhões de reais nos cofres públicos em 2021, continuaria sendo necessário reduzir despesas para acomodar o novo programa social. E é bom que seja assim: uma das virtudes do teto de gastos é justamente impedir que, em tempos de vacas gordas, o governo se veja autorizado a gastar como se não houvesse amanhã, em vez de usar eventuais sobras de forma mais responsável, por exemplo reduzindo a dívida pública. Assim, a sugestão do TCU pode até tocar em um ponto sensível que merece discussão, mas tem efeito nulo no objetivo de liberar recursos para o Renda Cidadã e, por isso, erra o alvo.

Com o fim do período eleitoral, não há mais desculpas para o governo adiar a discussão sobre as formas de financiamento do Renda Cidadã. O truque contábil que envolve dinheiro de precatórios e recursos do Fundeb não pode prosperar, pois seria um péssimo sinal a respeito do compromisso do governo com o ajuste fiscal. Havia uma solução bem melhor, proposta por Paulo Guedes e que consistia na eliminação de benefícios considerados ineficazes, mas que Jair Bolsonaro vetou, com direito a crítica pública ao ministro. Mas não há outra saída aceitável: ou o governo toma decisões fiscalmente responsáveis, ainda que impopulares, ou fica sem o Renda Cidadã. A “terceira via”, garantindo o programa sem os respectivos cortes, pode até passar pelo Congresso, mas será um golpe mortal na credibilidade do Brasil.

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