Defender a vida desde a concepção em um país governado por um partido que prega abertamente o abortismo não é tarefa fácil. É por isso que todas as iniciativas nesse sentido devem ser comemoradas, como o posicionamento recente do Conselho Federal de Medicina (CFM) contra a prática cruel da assistolia fetal após a 22.ª semana de gestação.
A Resolução 2.378/24 do CFM foi publicada em 4 de abril e determina que “é vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”. Traduzindo a linguagem médica, o conselho está afirmando que, chegado o momento em que há chance de o nascituro sobreviver fora do útero, os médicos não poderão matá-lo por meio da aplicação de produtos químicos diretamente no coração do bebê para provocar uma parada cardíaca.
O documento ressalta artigos da Constituição Federal, do Código Penal e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reforçam o “direito inviolável à vida” e pelos quais “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”. Também é citado trecho da Convenção Americana de Direitos Humanos, afirmando que “pessoa é todo ser humano, e toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida, direito esse que deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
A interrupção da gravidez não precisa ser uma sentença de morte para o bebê
Entre defensores de um suposto “direito ao aborto” dentro e fora do governo federal, a resolução do CFM causou celeuma. No mesmo dia em que o documento foi publicado, o PSol, partido que integra a base governista, apresentou na Câmara dos Deputados um projeto de decreto legislativo (PDL), assinado por Erika Hilton (SP), líder da federação PSol-Rede, para derrubar a resolução. No dia seguinte à publicação, foi a vez de o Ministério Público Federal (MPF) pedir explicações ao CFM sobre a “fundamentação técnica e legal utilizada pelo CFM para elaborar a norma”. Em 8 de abril, a Justiça Federal de Porto Alegre publicou uma liminar para que o CFM se manifestasse sobre a resolução no prazo de 72 horas.
Em todos esses questionamentos, o argumento usado é o mesmo: como a legislação brasileira não determina prazo máximo para a realização de aborto nos casos em que a prática não é punida, o entendimento abortista é o de que a interrupção da gravidez deve ser feita a qualquer momento, independentemente da idade gestacional, e sempre ser precedida da morte prévia do bebê dentro do útero materno. Esse foi, inclusive, o argumento da nota técnica emitida pelo Ministério da Saúde em fevereiro deste ano, que preconizava o aborto em qualquer fase de gestação, feito sempre a partir da assistolia fetal. O teor absurdo da nota gerou uma reação tão forte que o ministério revogou o texto no dia seguinte; mas, como se vê nas reações à resolução do CFM, ainda há muitos dispostos a defender a brutalidade.
Por mais que, de fato, a legislação brasileira – mais precisamente, o artigo 128 do Código Penal – não estabeleça uma idade gestacional limite para o aborto nos casos em que a prática não é punível, a orientação geral sempre foi a mesma preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera como aborto apenas a interrupção da gravidez que ocorre até a 22.ª semana de gestação. Nos governos anteriores, incluindo os do PT, o Ministério da Saúde usou esse limite para orientar a realização da prática no país. Quando, no governo de Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde publicou documento afirmando que o tempo máximo para a realização de um aborto era de 22 semanas de gestação, e que após esse prazo seria preciso fazer a antecipação do parto com a oferta de todos os cuidados médicos disponíveis para buscar a sobrevivência do bebê, estava apenas repetindo normativas de outros governos, incluindo o de Dilma Rousseff.
Na resolução do CFM não há qualquer entrave à interrupção da gravidez das mulheres vítimas de estupro ou dos outros casos em que a prática não é punida, como querem fazer parecer os críticos. A simples delimitação dos prazos para a realização do aborto, como definido na resolução do CRM, não significa que a possibilidade de interrupção de uma gravidez resultante de estupro foi suprimida. O documento apenas estabelece qual o modo mais adequado de fazê-lo de acordo com o estágio da gestação, levando em conta a viabilidade de o bebê sobreviver fora do corpo da mãe e também o impacto da prática na saúde da mulher. Para isso, usa uma distinção importante: entre o aborto feito até a 22.ª semana de gestação, quando o nascituro não tem condições de sobrevida extrauterina (e a interrupção da gravidez significa necessariamente a morte do feto); e o parto antecipado, feito após as 22 semanas de gravidez, quando o bebê, mesmo prematuro, já tem alguma chance de sobreviver fora do corpo da mãe.
A interrupção da gravidez não precisa ser uma sentença de morte para o bebê. Tanto no aborto deliberado quanto na antecipação do parto, a mulher tem a gravidez interrompida; mas, ao seguir a recomendação do CRM e não praticar a assistolia fetal prévia, os médicos ao menos dão uma chance de vida aos bebês com idade gestacional avançada. E aqui está o cerne de toda a discussão: havendo a mínima chance de que o nascituro sobreviva fora do útero, a decisão deliberada de matá-lo em vez de encerrar a gestação por meio da antecipação do parto – e da entrega do bebê para adoção, caso ele sobreviva e a mãe não o deseje, por motivos que não nos cabe julgar – é manifestação de pura barbárie.