As regras propostas e aprovadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para as eleições municipais de 2024, em vez de promover a urgente e necessária distensão em um país que vive um apagão da liberdade de expressão, resolveram elevar a aposta. Poderes de polícia ampliados, uso indiscriminado de conceitos suficientemente abertos para justificar a repressão a vários tipos de discurso, e reforço de tabus a respeito de temas que não podem ser discutidos de forma alguma foram cristalizados quando o TSE aprovou as resoluções que atualizam textos anteriores da corte. Mas um dispositivo específico que ampliará a atuação da “polícia do pensamento” nós próximos meses é especialmente preocupante, pois o TSE, não contente em coibir por iniciativa própria uma série de discursos, resolveu atribuir a mesma função aos próprios provedores e times de moderação das redes sociais.
A Resolução 23.732/24 do TSE atualiza outro texto normativo, a Resolução 23.610/19, e insere nela um artigo, o 9.º-E, pelo qual “os provedores de aplicação serão solidariamente responsáveis, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral”, em uma série de “casos de risco” que incluem “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”; “discurso de ódio”, expressão-coringa na qual cabe praticamente tudo que desagrada alguém; ou “condutas, informações e atos antidemocráticos”, definição também bastante ampla e que tem sido usada para descrever até mesmo o que seriam críticas legítimas em um país onde a liberdade de expressão vigorasse plenamente.
A “polícia do pensamento” instaurada pelo TSE ganha o reforço dos provedores, não porque se ofereceram como voluntários, mas porque foram recrutados para o papel, sem possibilidade de se recusarem a participar da repressão
A lista de “casos de risco” é um bom resumo das anomalias que têm marcado a crise da liberdade de expressão no Brasil. O artigo 9.º-E está incluído em uma seção intitulada “Da desinformação na propaganda eleitoral”, e o próprio conceito de “desinformação” está na raiz de uma das mais absurdas pretensões do Judiciário na escalada recente de ataques às liberdades democráticas: a de querer determinar o que é falso ou verdadeiro, correto ou incorreto. A não ser em casos muito específicos, em que haja a devida provocação de partidos ou candidatos em relação a afirmações indubitavelmente factuais sobre legendas ou candidatos, não cabe à Justiça em lugar nenhum do mundo avaliar a veracidade de um discurso, mas é exatamente o que vem acontecendo no Brasil – de forma ainda mais acintosa, o TSE já chegou ao ponto de censurar conteúdos que a própria corte admitiu serem verdadeiros, mas que, apresentados juntos, trariam uma “conclusão falsa”, como afirmou Alexandre de Moraes ao desempatar o julgamento que selou a censura a um vídeo em outubro de 2022. Já a introdução do “discurso de ódio” é aberrante porque se trata de conceito inexistente na lei brasileira, mas que ainda assim o TSE quer introduzir em normativas legais sem nem mesmo definir no que ele consistiria.
Aos graves problemas conceituais da resolução somam-se as questões legais. A resolução viola expressamente praticamente todas as leis brasileiras que tratam de remoção de conteúdo e que, como regra geral, só preveem a responsabilização dos provedores em caso de descumprimento de decisão judicial devidamente notificada. É o caso do artigo 19 do Marco Civil da Internet e do artigo 57-F da Lei das Eleições – pode-se até argumentar que a lei atual não é boa e deveria ser melhorada, mas esta seria uma discussão a se travar no Legislativo, não no Judiciário. Curiosamente, a redação final do artigo 9.º-E não constava da minuta submetida a discussão pública; o mais próximo que havia de uma responsabilização solidária dos provedores estava em um artigo sobre o uso de inteligência artificial, montagens e edições e som e imagem, e mesmo assim ainda previa a exigência de notificação. E especialmente digno de nota é o fato de que, durante as discussões e audiências públicas realizadas antes que as versões finais das resoluções fossem votadas pelo TSE, não faltaram propostas para adequar as resoluções à legislação; todas elas, no entanto, foram rejeitadas pela relatora Cármen Lúcia.
O resultado prático da nova norma é bastante evidente: a autocensura ganhará proporções muito maiores nestas eleições em comparação com as anteriores. Ao menor sinal de que determinado conteúdo possa representar um “caso de risco”, os provedores já tomarão a iniciativa de removê-lo antes mesmo que a Justiça Eleitoral intervenha, seja decidindo pela remoção, seja partindo imediatamente para a responsabilização do site ou rede social que deixou no ar aquele conteúdo. Em outras palavras, a “polícia do pensamento” instaurada pelo TSE ganha o reforço dos provedores, não porque se ofereceram como voluntários – embora não se possa descartar uma atuação politicamente enviesada da parte das equipes de moderação, disfarçada de “atenção às normas eleitorais” –, mas porque foram recrutados para o papel, sob pena de responsabilização judicial e sem possibilidade de se recusarem a participar da repressão.
A Constituição afirma, em seu artigo 5.º, inciso II – ou seja, entre os direitos e garantias fundamentais –, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Mesmo assim, os responsáveis pelos provedores serão obrigados a vigiar e censurar conteúdos, inclusive aqueles que não deveriam causar problema algum em um cenário de normalidade democrática, mas que no Brasil atual são considerados “proibidos”. Como isso será possível, se esse “ataque preventivo” à liberdade de expressão não é exigido nem pelo Marco Civil da Internet, nem pela Lei das Eleições? A resposta é bem simples: a lei, hoje, já não é o que está escrito nos códigos, discutidos e aprovados pelos representantes eleitos do povo, mas apenas o que sai da mente de uns poucos ministros de tribunais superiores, e que ainda por cima parecem muito dispostos a usar o período eleitoral como teste para, depois, tornar permanentes as regras que vão impondo lentamente. Eles, hoje, são a lei no Brasil.
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