Plenário do STF confirmou liminar de Alexandre de Moraes que restringia direito de manifestação sem prazo determinado.| Foto: Carlos Alves Moura/STF
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Se um grupo de brasileiros quiser se reunir para protestar contra o presidente Lula em local público, aberto, de forma pacífica, sem armas e sem incitação a crimes como golpes de Estado, tendo previamente avisado as autoridades e cumprido todos os demais requisitos eventualmente exigidos por regulamentos locais (existentes quando se trata, por exemplo, de ocupar uma via importante de determinada cidade), poderá fazê-lo? E se o objetivo da manifestação for protestar contra desmandos do Supremo Tribunal Federal – novamente, de forma pacífica e sem pedidos descabidos como os de fechamento da corte? E para comemorar uma conquista futebolística? Em outros tempos, a resposta a tal pergunta seria um óbvio “sim”; mas, infelizmente, nos tempos que correm o fato é que ninguém pode dizer com total certeza se o direito constitucional à reunião ainda vigora no Brasil. A mera existência dessa dúvida mostra que o país está vivendo uma situação completamente anômala em termos de liberdades democráticas – anomalia que é intensificada pelo fato de muitos brasileiros nem mesmo se darem conta da gravidade do problema.

No imediato pós-8 de janeiro, diante de chamadas em mídias sociais para uma manifestação “pela retomada do poder” convocada para o fim da tarde de 11 de janeiro, a Advocacia-Geral da União pediu ao STF “que se restrinja, pontual e momentaneamente, diante da situação de absoluta excepcionalidade, o exercício do referido direito de manifestação (que, como bem visto no último domingo 08/01/2023, para além de abusivo, foi verdadeiramente criminoso), vedando a interrupção do trânsito urbano e rodoviário em todo território nacional, bem como o acesso a prédios públicos por tais ‘manifestantes’, até que o estado de normalidade seja restabelecido”. O ministro Alexandre de Moraes prontamente atendeu o pedido, determinando que as autoridades “adotem as providências necessárias para impedir quaisquer tentativas de ocupação ou bloqueio de vias públicas ou rodovias, bem como de espaços e prédios públicos em todo o território nacional, notadamente – mas não só – nos locais indicados na postagem ‘mega manifestação nacional – pela retomada do poder’, além de “determinar a proibição de interrupção ou embaraço à liberdade de tráfego em todo o território nacional, bem como o acesso a prédios públicos” (destaques do próprio Moraes).

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O Brasil vive ao menos em parte as consequências de um estado de exceção, sem que tenha havido o respectivo trâmite e sem que tenham sido acionadas as autoridades a quem cabe decretá-lo

Tanto o pedido da AGU quanto a liminar de Moraes foram muito além do que seria conveniente e justificável para coibir o tal ato “pela retomada do poder” marcado para o dia 11 de janeiro (ato este, aliás, que nem chegou a ocorrer). O que ocorreu, e a solicitação da AGU o diz sem camuflar as palavras, foi uma restrição do direito constitucional de manifestação, previsto no inciso XVI do artigo 5.º da Carta Magna. Da forma como foi redigida a liminar, tal restrição não se limitava a impedir um ato golpista específico; ela colocou quaisquer protestos pacíficos e legítimos no mesmo balaio de manifestações criminosas que não são protegidas nem pela liberdade de expressão, nem pelo direito de reunião – bastaria apenas que a aglomeração de pessoas bloqueasse uma via pública para estar na mira da liminar de Moraes.

A supressão dessa liberdade democrática é algo tão grave que a Constituição só a prevê em dois casos: o estado de defesa e o estado de sítio – e nenhum deles vigora no Brasil atualmente. Tais situações exigem a consulta aos conselhos da República e de Defesa Nacional, seguida de um decreto presidencial que precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional. Ora, nem mesmo na sequência dos deploráveis atos golpistas de 8 de janeiro o governo viu a necessidade de decretar nem estado de defesa, nem estado de sítio – se a medida chegou a ser cogitada, acabou descartada. Quando, portanto, a AGU solicita e Moraes decreta “que se restrinja (...) o exercício do referido direito de manifestação” sem que estejam presentes as condições estabelecidas pela Constituição para tais restrições, ficam atropeladas a Carta Magna, a liberdade e a democracia. Todo esse trâmite constitucionalmente previsto foi sumariamente substituído pela canetada de um ministro do Supremo, a pedido de um advogado-geral da União, que se julgam na posição de implantar medidas características de estado de exceção, tomando para si o papel dos representantes eleitos pelo povo. E, para completar o absurdo, a liminar de Moraes não previa nenhuma data para o fim da restrição, nem mesmo repetindo o genérico e arbitrário “até que o estado de normalidade seja restabelecido” que constava do pedido da AGU.

Por tudo isso, é simplesmente absurdo que o plenário do STF tenha mantido de forma unânime a liminar de Moraes, em votação virtual encerrada em 12 de janeiro (depois, portanto, do suposto ato golpista que não ocorreu), sem a menor preocupação em estabelecer o alcance da proibição, seja temporal, seja quanto ao teor do ato público. Nunes Marques, o único a apresentar voto por escrito além do relator Moraes, até afirmou “que não é possível presumir que toda e qualquer manifestação seja automaticamente reputada ou interpretada como crime” e que, se por um lado cabe ao poder público coibir atos que abusem do direito de manifestação ou que descambem para a violência, “não se pode, de antemão, contudo, vedar seu exercício”, mas endossou a liminar, contrariando o próprio argumento.

A restrição ao direito de manifestação, da forma como foi pedida pela AGU e concedida por Moraes, já era flagrantemente inconstitucional e antidemocrática mesmo diante do risco de um novo ato violento e golpista, pois se tratou de proibição genérica, quando deveria coibir apenas o protesto específico de 11 de janeiro e outros eventuais atos com o mesmo teor. Ainda mais absurda ela soa agora, quase um mês depois da liminar, sem que haja uma palavra do STF no sentido de fornecer esclarecimentos a respeito de prazos que não foram definidos por Moraes. Por mais que alguns juristas ouvidos pela Gazeta do Povo defendam a tese segundo a qual a proibição se limitava a 11 de janeiro, isso não está explícito nem na liminar, nem no voto de Moraes. A decisão pode muito bem ser invocada para coibir qualquer manifestação de teor político com reivindicações totalmente legítimas – basta que elas desagradem os donos das canetas. Um risco cuja enormidade e gravidade são igualadas apenas pelo silêncio da opinião pública e pela sociedade civil organizada, que, anestesiadas pelo horror do 8 de janeiro, consentiram ou até elogiaram as restrições impostas, talvez sem ter percebido o seu real alcance.

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Em outras palavras, o Brasil vive ao menos em parte as consequências de um estado de exceção, sem que tenha havido o respectivo trâmite e sem que tenham sido acionadas as autoridades a quem cabe decretá-lo, substituídas por 11 ministros do Supremo que não se preocuparam nem mesmo em definir até quando vigoraria esta verdadeira aberração, ignorando que qualquer decisão que restrinja liberdades tem de ser muito precisa e detalhada para não gerar áreas cinzentas que permitam ainda mais arbítrio. Repetimos: nem mesmo os poderes Executivo e Legislativo viram necessidade de estado de defesa ou sítio no pós-8 de janeiro. O “estado de normalidade” a que se refere a AGU já foi restabelecido há tempos: as aventuras golpistas cessaram, os acampamentos diante de quartéis estão desmontados, Supremo e Congresso voltaram de seus recessos normalmente. Empurrar para debaixo do tapete o fato de que está em vigor uma violação do direito constitucional à manifestação é conveniente para os liberticidas (e os há em boa quantidade em Brasília), mas é outro sinal perigoso de que o Brasil vive uma anomalia grave em termos de liberdades democráticas.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]