Na última terça-feira, Alexandre de Moraes permitiu que o X voltasse a funcionar normalmente no Brasil. Ainda no fim de setembro, a empresa de Elon Musk havia enviado ao STF documentação atestando o cumprimento de todas as ordens judiciais – inclusive as flagrantemente injustas e inconstitucionais, como a suspensão de nove perfis – e o pagamento das multas devidas, e recebeu em troca uma nova rodada de exigências, também cumpridas. Mesmo assim, só para mostrar quem manda, Moraes ainda esperou alguns dias até finalmente desbloquear o acesso ao X. Para não poucos, isso representará o fim da controvérsia e um retorno à normalidade: agora que o X está funcionando e todos (a exceção dos censurados) podem ler e publicar à vontade, está tudo bem. Mas a realidade é outra: não está, não esteve e muito provavelmente não estará, ao menos em um futuro próximo.
Quem suspira de alívio ao saber que poderá voltar a usar a rede para fins pessoais ou profissionais não entende, ou não quer entender, que o fato de Moraes ter prevalecido na disputa contra Musk é um indicador preocupante de total deterioração das liberdades de um país que já não pode se dizer democrático. Não foi a lei que saiu vencedora deste embate, pois a lei – e não qualquer lei, mas a Constituição – proíbe censura prévia, proíbe a imposição de “deveres de não fazer” por via judicial, garante o devido processo legal, protege a liberdade de expressão. Quem realmente saiu fortalecida foi uma concepção muito particular do direito, que coloca a vontade de um único homem acima de todo o ordenamento jurídico nacional, no que reportagem da Gazeta do Povo chamou de “linha de magistratura ‘freestyle’”, em que Moraes “decide o que quer, como quer e quando quer, sem se importar em preservar ao menos a aparência de embasamento legal dos seus atos”.
Quando as liberdades e garantias democráticas são agredidas constantemente sem que a sociedade se coloque com firmeza diante do agressor e o faça parar, ele sente que pode ir além e testar novas formas de arbítrio
Os exemplos desse absolutismo jurídico são suficientes para preencher uma volumosa coletânea, comparável às Constituições e códigos comentados que se encontram nas prateleiras de advogados e magistrados Brasil afora. Cidadãos são punidos das mais diversas formas, da censura on-line à prisão preventiva, sem que se aponte nem mesmo os crimes pelos quais são investigados ou de que são suspeitos – as prisões preventivas, aliás, são infinitamente esticadas sem motivo razoável que as embase. Brasileiros são acusados e condenados sem provas que atestem sua participação nos supostos crimes, em uma abolição da chamada “individualização da conduta”. Toda a população brasileira é ameaçada de multa e proibida de fazer algo que a lei não veda, sem que seja parte no respectivo processo. Inquéritos eternos correm em absoluto e injustificável sigilo, abastecidos por estruturas paralelas nas quais é evidente que primeiro se escolhe um culpado, e só então busca-se algo que o incrimine.
Tudo isso sem a menor necessidade de citar a base legal para que tais medidas sejam tomadas – até porque, na maioria dos casos, tal base legal simplesmente não existe, e citar a Constituição e as leis se tornaria mais um embaraço que um apoio a muitas decisões. É assim que bordões insistentemente repetidos em negritos, letras maiúsculas e salpicados com inúmeras exclamações se tornam o argumento infalível que triunfa sobre todos os códigos legais. A vontade de Alexandre de Moraes se tornou a lei, de uma forma que nem Luís XIV (o monarca francês ao qual se atribui a frase “o Estado sou eu”) jamais poderia imaginar. Se não há base jurídica para manter alguém preso preventivamente – e às vezes até a Procuradoria-Geral da República o reconhece –, mas Moraes deseja prolongar a prisão preventiva, ela é prolongada. Se a Constituição proíbe censura prévia, mas Moraes quer impedir alguém se se expressar nas mídias sociais, a pessoa é bloqueada. Se a lei não impede brasileiros de usar VPNs para acessar um site, mas Moraes não quer que os brasileiros usem o X, inventa-se uma regra com punições pesadas e desproporcionais.
E o episódio envolvendo o X mostra o quanto isso foi normalizado até por quem tem a obrigação moral de defender as liberdades democráticas no país. Apenas um partido político, o Novo, acionou o STF para conseguir a derrubada de toda a decisão de Moraes bloqueando o X. Todos os demais atores do mundo político e empresarial, ou entidades de classe, ou se calaram ou buscaram atacar apenas elementos acessórios da decisão, como a proibição e a multa por uso de VPNs. No fundo, é como se validassem o bloqueio de toda uma mídia social em represália ao não cumprimento de ordens claramente injustas e inconstitucionais, limitando-se a querer arrancar alguns galhos mais incômodos enquanto deixa em pé todo o tronco de uma árvore doente.
O autoritarismo se alimenta de todas essas omissões, silêncios, medos e concessões. Quando a Constituição, as liberdades e garantias democráticas, os códigos processuais e os princípios básicos de justiça são agredidos constantemente sem que a sociedade se coloque com firmeza diante do agressor e o faça parar, ele sente que pode ir além e testar novas formas de arbítrio. Se recentemente comparamos o Brasil ao proverbial sapo na fervura, temos de reconhecer que cada representante do povo, cada entidade de classe, cada instituição da sociedade civil organizada que se cala, que normaliza o absurdo, ajuda a firmar a mão que eleva a temperatura da água. Mas apenas soltá-la não basta; é preciso puxá-la para longe do botão que regula o fogo e apagá-lo.