A sociedade acordou para o dano causado ao país quando figuras sem a menor qualificação ocupam os mais altos postos da República. E é natural que os brasileiros apoiem iniciativas que, dentro dos marcos institucionais, colaborem para limpar o cenário. É nesse contexto que se vê o julgamento, que será retomado agora pelo Supremo Tribunal Federal, de uma ação sobre a possibilidade de um réu integrar a linha sucessória da Presidência da República. A Rede Sustentabilidade, autora da ação, visava o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, mas atingiu Renan Calheiros, presidente do Senado e investigado pela Lava Jato, no episódio da liminar do ministro Marco Aurélio Mello, em dezembro.
A tese da Rede se baseia no artigo 86 da Constituição, que determina o afastamento do presidente da República “nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal; nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal”. Ora, se um presidente tornado réu é afastado do cargo, quem já responde a processo não poderia nem sequer assumi-lo, mesmo que temporariamente. Mas a conclusão não é automática, pois o parágrafo 4.º do mesmo artigo 86 afirma que “o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”; ele só pode ser afastado por atos ligados à função presidencial. Mas, se um eventual substituto se torna réu por atos cometidos como presidente da Câmara, do Senado ou do Supremo, ou em qualquer outra circunstância, não seriam esses atos “estranhos ao exercício” das funções de presidente da República?
Se os parlamentares buscassem exemplos de conduta ilibada para liderá-los, essa discussão seria inócua
Além disso, a aceitação de uma denúncia é uma etapa protocolar de um processo; não representa um pré-julgamento, nem uma pré-condenação. Ela embute uma avaliação de mérito mínima: se há elementos suficientes para que a pessoa seja levada a juízo, mas não vai além disso. É verdade que a Constituição prevê o afastamento do presidente da República quando a Câmara vota a admissibilidade de um processo contra ele, e esse afastamento é uma medida administrativa que não viola a presunção de inocência consagrada pela própria Constituição. Mas o que a Rede pretende vai além disso: seria a ampliação indiscriminada de uma sanção. Sendo Calheiros quem é, não era difícil apoiar sua remoção da linha sucessória, mas não podemos nos guiar por casuísmos. Se ontem tínhamos Cunha e hoje temos Calheiros, amanhã podemos ter um político honesto cuja carreira poderia ser prejudicada por agentes públicos mal-intencionados.
De qualquer modo, a tese proposta pela Rede deve prosperar – ela já tem a adesão da maioria do STF. Ainda assim, restará a questão: o eventual réu ficaria impedido apenas de substituir o presidente da República, ou ele nem mesmo poderia presidir a Câmara, o Senado ou o Supremo? Por ocasião do julgamento, no pleno do STF, da liminar contra Calheiros, já defendemos que impedir alguém de ser presidente da Câmara ou do Senado por responder a processo seria subordinar a essência do cargo às funções acessórias que ele traz consigo. O resultado daquele julgamento indica que esse entendimento pode prevalecer. Se assim for, o STF precisará ser bem detalhado em sua decisão, limitando a restrição à possibilidade de substituir o presidente da República, sem efeitos sobre o exercício do cargo de presidente do Senado, da Câmara ou do Supremo. Na situação em que alguém que responde a processo estivesse na posição de assumir a Presidência, essa pessoa simplesmente “passaria a vez” ao próximo na linha sucessória. Ir além disso seria atropelar regimentos e fazer acréscimos à Constituição, em vez de interpretá-la.
Mas existe uma maneira ainda mais simples de evitar esse tipo de controvérsia. Senado e Câmara elegerão seus presidentes nos próximos dias: se os parlamentares buscassem exemplos de conduta ilibada para liderá-los, não teríamos crises institucionais como a de dezembro e não perderíamos tempo no parlamento e na corte suprema com tais discussões. Mas senadores e deputados estarão dispostos a escolher os melhores, e não os “mais convenientes”, dentre eles?
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