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Editorial

O ataque grotesco de Lewandowski à imunidade parlamentar

Ricardo Lewandowski relativizou imunidade parlamentar no Senado.
Ricardo Lewandowski relativizou imunidade parlamentar na Comissão de Segurança Pública do Senado. (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Ricardo Lewandowski saiu do Supremo, mas o Supremo ainda não saiu de Ricardo Lewandowski, que, assim como seus ex-colegas de corte, continua achando que a Constituição é opcional, a para ser aplicada apenas quando convém, de resto estando subordinada à vontade de ministros – e também de ex-ministros. Durante audiência na Comissão de Segurança Pública do Senado, na terça-feira, o atual ministro da Justiça de Lula se empenhou em relativizar a imunidade parlamentar. “Se os parlamentares começarem a se ofender mutuamente, cometerem crimes contra a honra, ofenderem os seus colegas, então isso não está coberto pela imunidade”, afirmou Lewandowski, comentando os recentes indiciamentos dos deputados Marcel van Hattem (Novo-RS) e Cabo Gilberto Silva (PL-PB) devido a críticas a um delegado da PF, feitas da tribuna da Câmara.

Não é o que diz a Constituição, que no seu artigo 53 afirma que os deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Como o significado das palavras independe do que pensem ministros de Estado ou membros do STF, a conclusão óbvia, que nem exige muito esforço interpretativo, é a de que todas as manifestações de parlamentares estão protegidas pela Constituição. Independentemente de serem sensatas ou insensatas, serenas ou ríspidas, verdadeiras ou falsas; independentemente até mesmo de serem afirmações que, vindas de qualquer pessoa sem mandato parlamentar, ensejariam um processo por crime contra a honra.

Nessas circunstâncias, apenas os pares podem punir um deputado ou senador, e isso também foi decidido pelo constituinte de 1988. O artigo 55 prevê as situações em que um parlamentar pode perder o mandato, e o abuso da prerrogativa de usar livremente a palavra pode levar a um processo por quebra de decoro, no qual serão os deputados ou senadores a decidir o destino do colega. Todas as democracias dignas do nome ao longo dos últimos séculos souberam da necessidade de preservar uma das liberdades mais essenciais de um parlamentar: a participação livre e desimpedida no debate público, sem medo de coação externa. O constituinte brasileiro não estava inventando a roda; estava simplesmente replicando um princípio democrático extremamente óbvio.

Todas as democracias dignas do nome ao longo dos últimos séculos souberam da necessidade de preservar uma das liberdades mais essenciais de um parlamentar: a participação livre e desimpedida no debate público, sem medo de coação externa

E houve um tempo em que o Supremo entendeu e defendeu tudo isso. Em 2017, por exemplo, um ministro do STF rejeitou denúncia contra o então senador paraibano Cássio Cunha Lima por insultos feitos a um jornalista em um grupo de WhatsApp, invocando o artigo 55 da Constituição ao dizer que “eventual excesso praticado por parlamentar deve ser apreciado pela respectiva casa legislativa”. Ele ainda acrescentou que esta imunidade parlamentar, dita “material”, que protege as manifestações do deputado ou senador, “está amparada em jurisprudência sólida desta corte, como forma de tutela à própria independência do parlamentar, que deve exercer seu mandato com autonomia, destemor, liberdade e transparência, a fim de bem proteger o interesse público”. O autor deste voto vencedor era Ricardo Lewandowski – e isso em uma época na qual ele já demonstrava problemas de interpretação da Constituição, como bem o demonstrou a sessão do Senado que cassou Dilma Rousseff em 2016, presidida por Lewandowski, que avalizou a abolição do parágrafo único do artigo 52 da Carta Magna ao permitir que a então presidente sofresse o impeachment e, ainda assim, mantivesse seus direitos políticos.

De 2017 para cá, Lewandowski mudou, tornando-se mais um adversário da liberdade de expressão – foi ele quem, em sessão do TSE, sacou da cartola o conceito de “desordem informacional” para censurar um vídeo que não trazia uma única mentira sequer a respeito do então candidato Lula. Mudou também o STF, que passou a relativizar rotineiramente a imunidade parlamentar: condenou Jair Bolsonaro pelo bate-boca com Maria do Rosário, e condenou Daniel Silveira pelo vídeo com críticas ferozes a ministros do STF, sem falar de todas as outras denúncias e investigações de parlamentares por “palavras, opiniões e votos”.

Mas de nada adianta Lewandowski, agora, invocar a jurisprudência recente do Supremo em defesa dos indiciamentos de Van Hattem e Silva. Primeiro, porque as decisões recentes são aberrações jurídicas profundamente antidemocráticas, que violam frontalmente a Carta Magna; segundo, porque, ao contrário de Bolsonaro e Silveira, os deputados que criticaram o delegado da PF Fábio Shor o fizeram da tribuna, o lugar mais sagrado da atividade parlamentar. Se nos casos anteriores a persecução penal já se revelava uma violação frontal dos dispositivos constitucionais, mais absurdo é pretender punir um parlamentar pelo que diz na tribuna; se a imunidade não se aplica nem ali, não se aplicaria em nenhum outro lugar.

Antes mesmo que Lewandowski fosse ao Senado expor seu entendimento liberticida e inconstitucional da imunidade parlamentar, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), havia finalmente despertado e criticado os indiciamentos, defendendo as prerrogativas de seus pares. Em reação às palavras do ministro da Justiça, deputados também reagiram nas mídias sociais e anunciaram o lançamento de uma Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade de Expressão, que deve acompanhar não apenas questões relativas à imunidade parlamentar, mas à liberdade de expressão como um todo. Pode-se até questionar por que foi necessário um avanço tão acintoso do Judiciário sobre as garantias democráticas dos parlamentares para que um presidente de casa legislativa (o outro segue dormindo, ao que parece) se manifestasse, mas antes tarde do que nunca – desde, claro, que a disposição em defender a liberdade de expressão contra arroubos autoritários seja genuína e não se limite a reclamações estéreis.

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