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Ministro do STF Ricardo Lewandowski discursa observado por João Pedro Stedile, da Coordenação Nacional do MST.
Ministro do STF Ricardo Lewandowski discursa observado por João Pedro Stedile, da Coordenação Nacional do MST.| Foto: Sara Sulamita/Reprodução/MST

De um ministro de suprema corte, em qualquer país do mundo, espera-se no mínimo discrição e imparcialidade – no Brasil, essas são inclusive exigências legais, presentes na Constituição e nos códigos que regem a atividade da magistratura. No entanto, elas já se tornaram letra morta há muito tempo: semana sim, semana também, ministros do Supremo Tribunal Federal concedem entrevistas, dão palestras e se manifestam fora dos autos por vários outros meios, comentando temas e pessoas que mais cedo ou mais tarde terão de julgar. Mas, a poucos meses de sua aposentadoria, o ministro Ricardo Lewandowski levou essa indiscrição a um novo patamar, tanto pelas circunstâncias quanto pelo teor de sua fala.

No último fim de semana, Lewandowski participou de um evento do Movimento dos Sem-Terra, uma das entidades-satélites do petismo, em Guararema (SP). Ao lado do “general” João Pedro Stédile (aquele cujo “exército” Lula, em fevereiro de 2015, disse querer “botar na rua”, pedido atendido logo no mês seguinte), Lewandowski se desmanchou em elogios ao grupo, que, segundo ele, “está lutando em prol da concretização do que acreditamos ser a democracia”. Irônica essa atribuição de “democrata” a um grupo que já promoveu a sua própria versão do 8 de janeiro bolsonarista: em 12 de fevereiro de 2014, a marcha do MST entrou na Praça dos Três Poderes com 15 mil pessoas, tentando invadir, em primeiro lugar, o prédio do STF, forçando a corte a suspender sua sessão – presidida por Lewandowski –; sem sucesso, os sem-terra rumaram para o Planalto, onde, usando paus, pedras portuguesas arrancadas do piso da praça e até martelos, feriram 30 policiais, oito deles gravemente.

É irônico que Lewandowski chame os sem-terra de “democratas” quando o MST já promoveu a sua própria versão do 8 de janeiro, tentando invadir o Supremo e o Planalto em fevereiro de 2014

Mais grave ainda, no entanto, foi outra afirmação do ministro: “A democracia está em crise, todos dizem isso. Mas o que está em crise, na verdade, é a democracia representativa, liberal burguesa, a democracia dos partidos, na qual, tenho certeza, nenhum de nós se sente representado adequadamente. Essas crises sucessivas têm uma raiz profunda, que é o sistema político que, de fato, não nos representa”, afirmou. Usando um palavreado típico da jurássica esquerda marxista, o que Lewandowski fez foi colocar em xeque o modelo democrático adotado não apenas no Brasil, mas em praticamente todo o mundo ocidental.

Repare o leitor que Lewandowski não atribui a “crise de representação” a um modelo específico de voto – por exemplo, o sistema proporcional, em oposição aos distritais puro ou misto –, nem ao tão falado “presidencialismo de coalizão” brasileiro e às negociatas que ele incentiva; o alvo da crítica do ministro é o sistema político, a democracia representativa em si mesma. Eis aí um ataque frontal àquilo que de melhor a sociedade conseguiu produzir nos últimos séculos em termos de proporcionar ao povo a oportunidade de definir seu próprio destino, dada a inviabilidade da democracia direta em boa parte do mundo.

Diante das afirmações do ministro, é preciso perguntar: que outra democracia haveria? E a resposta existe: democracia real, nenhuma; há apenas as “democracias” entre aspas, que se intitulam como tais quando na verdade não passam de ditaduras de autoproclamados representantes do povo (ou nem isso). Aqui, é preciso ressaltar o que podemos considerar um ato falho de Lewandowski quando afirma que o MST está lutando não “em prol da democracia”, mas “em prol (...) do que acreditamos ser a democracia”, pois de fato o que a esquerda alardeia ser democrático quase nunca o é, como atestam os venezuelanos que, como disse Lula em 2005, têm “democracia em excesso”; ou os habitantes da República Popular Democrática da Coreia (mais conhecida como Coreia do Norte); ou aqueles que viveram na República Democrática Alemã, a Alemanha Oriental.

Por fim, nestes tempos em que se estabeleceu quase que uma absurda contraposição entre liberdade de expressão e defesa da democracia, como se aquela fosse um risco para esta, em vez de ser um de seus pilares, é preciso questionar: manifestações visivelmente antidemocráticas como as de Lewandowski (ainda que ele possa estar convicto de ter feito uma defesa real da democracia) devem ser toleradas em uma sociedade democrática? Que Lewandowski passou dos limites por ignorar seu dever de ofício, como magistrado que deveria se pautar pela imparcialidade, é evidente; mas, se ele não fosse quem é, suas afirmações sobre a democracia representativa deveriam estar sujeitas a algum tipo de restrição?

Manifestações visivelmente antidemocráticas como as de Lewandowski (ainda que ele possa estar convicto de ter feito uma defesa real da democracia) devem ser toleradas em uma sociedade democrática?

Como a Gazeta do Povo já lembrou em ocasiões anteriores, essa questão já ocupou as mentes de grandes nomes da filosofia política. Aqui, cabe recordar Karl Popper e seu “paradoxo da tolerância”, frequentemente citado pela metade. “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”, diz o filósofo austríaco no trecho que todos recordam. Frequentemente ignorada, no entanto, é a sequência do raciocínio, em que Popper diz preferir que o discurso intolerante seja combatido na arena racional, dos argumentos, não pela repressão estatal. Para ele, a coação legal seria válida apenas nos casos em que os intolerantes não estivessem dispostos ao debate, impedissem seus seguidores de ouvir argumentos contrários ou quisessem se impor pela força. É a mesma posição de John Rawls em Uma teoria da justiça: havendo ameaça à segurança e às “instituições que preservam a liberdade”, justifica-se a repressão estatal ao discurso antidemocrático (como faz a lei brasileira, por exemplo, ao criminalizar a defesa de golpes de Estado); do contrário, ele prefere que tal discurso seja permitido para que a sociedade não acabe se tornando intolerante.

Discursos antidemocráticos como o de Lewandowski estão objetivamente equivocados, disso não temos a menor dúvida, e a Gazeta do Povo reafirma sua convicção de que a democracia representativa é amplamente superior a qualquer forma de autoritarismo, “governo forte” ou “democracia” fictícia. E é exatamente devido a nosso compromisso democrático que também afirmamos que a liberdade de expressão protege esse tipo de manifestação (ao contrário de discursos que violam a dignidade humana, como o nazismo ou o racismo, cuja proibição legal se justifica). Se algum tipo de responsabilização recair sobre Lewandowski, não será (ou, ao menos, não deveria ser) motivada pelo teor de suas afirmações, mas por terem vindo de alguém a quem esse tipo de manifestação é vedado devido ao cargo que ocupa. Nestes tempos em que a liberdade de expressão vem sendo tão vilipendiada – em nome da “defesa da democracia”, em uma ironia cruel –, é preciso lembrar que essa garantia democrática existe, nas palavras de Oliver Wendell Holmes Jr., juiz da Suprema Corte norte-americana, especialmente para defender a “liberdade para as ideias que detestamos”.

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