O Senado confirmou, na noite de quarta-feira, Kassio Nunes Marques como o mais novo ministro do Supremo Tribunal Federal. Após a sabatina, o desembargador indicado por Jair Bolsonaro foi aprovado por 22 votos a 5 na Comissão de Constituição e Justiça, e por 57 votos a 10 no plenário, com uma abstenção. Nos dias que antecederam a sabatina, políticos próximos tanto do presidente quanto de setores que se mostraram contrariados com a escolha tentaram amenizar as críticas. No entanto, o que se viu na amistosa sessão de perguntas e respostas não dá muitas esperanças mesmo a quem estava disposto a dar uma chance ao novo ministro. Naqueles temas em que o indicado tinha a possibilidade de oferecer sua opinião, Marques ainda se mostrou distante do perfil ideal para o cargo que ocupará.
Infelizmente, alguns senadores desperdiçaram sua oportunidade ao fazer perguntas sobre ações judiciais nas quais Marques, se confirmado no Supremo, ainda poderá votar – é o caso, por exemplo, da ADPF 442, que busca legalizar o aborto no Brasil durante o primeiro trimestre de gestação, ou sobre o abusivo inquérito das fake news que continua em curso no Supremo. Isso porque a Lei Orgânica da Magistratura proíbe qualquer manifestação que seja entendida como antecipação de voto. Assim, não se poderia dizer nem mesmo que Marques tenha sido esquivo nestes casos, pois se trata de vedação legal.
Ainda assim, havia todo um leque de temas nos quais o desembargador estava livre para se pronunciar, e em nenhum desses momentos chegou a despertar algum entusiasmo – pelo contrário. Um exemplo significativo é o do aborto. Apesar de se dizer defensor da vida desde a concepção e de considerar que a legislação atual (que considera o aborto crime, mas não o pune nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e feto com anencefalia) é bastante satisfatória, o sabatinado deixou uma brecha, ainda que mínima, para novas relativizações do respeito ao direito do nascituro à vida – promovidas, inclusive, pelo Judiciário: “só se eventualmente vier a acontecer algo que hoje é inimaginável (...), algo nesse sentido que transformasse a sociedade e provocasse tanto o Congresso quanto o Poder Judiciário para promover modificações nesse sentido”, afirmou, dando como exemplos uma pandemia ou outros casos de anomalias fetais.
O que se viu na amistosa sessão de perguntas e respostas não dá muitas esperanças mesmo a quem estava disposto a dar uma chance ao novo ministro
Outro caso envolveu suas afirmações sobre a Operação Lava Jato. Apesar de reconhecer méritos da operação, reafirmou a famosa narrativa dos “abusos”. “O que acontece e pode acontecer em qualquer operação, em qualquer decisão, é que, se houver um determinado ato ou conduta [ilegal], essas correções podem ser feitas. Nada é imutável”. Tomada genericamente, a frase é corretíssima. Mas, quando ela é dita dentro de um contexto que envolve a Lava Jato, a pergunta que fica no ar – e que, infelizmente, não foi feita na sabatina – é: em que casos concretos houve excessos ou abusos na Lava Jato? Do contrário, deixa-se tudo no ar, dando a entender simplesmente que “houve excessos e é preciso corrigi-los” sem nunca dizer exatamente o que foi feito de ilegal ou irregular, perpetuando uma narrativa equivocada que contribui para a desconstrução da operação. Infelizmente, isso não foi percebido nem mesmo os senadores mais comprometidos com a Lava Jato, que não pediram os esclarecimentos necessários.
Outra manifestação preocupante de Marques foi sua defesa do chamado “garantismo” em oposição ao “originalismo”, oferecendo uma visão bastante aguada do que realmente representa a corrente que diz defender. “O perfil do garantismo”, para usar as palavras de Marques, não se resume simplesmente a garantir “as prerrogativas e direitos estabelecidos na Constituição” e que “todos os brasileiros, para chegar a uma condenação, devem passar por um devido processo legal”. Ora, isso não passa de resposta protocolar que agrada a todos; afinal, essas garantias independem de posicionamento, e um originalista também as defende sem hesitar. Mais uma vez, os senadores perderam oportunidades preciosas, pois até as paredes do prédio do STF sabem que, na realidade brasileira, “garantismo” é algo diferente: é a prática de, havendo uma interpretação possível da lei em benefício do réu, contra outra interpretação igualmente possível e que penda para o lado do bem público, escolher sempre aquela em detrimento desta – uma postura que tem uma série de implicações no combate à corrupção e na segurança pública.
O “garantismo” de Kassio Nunes Marques também foi citado em suas palavras sobre ativismo judicial. “O garantista por vezes precisa ser ativista. Não é um progressista, que está sendo protagonista de políticas públicas, criando normas, em substituição ao Legislativo e ao Executivo. Mas também não é um originalista, que simplesmente se limita ao que a doutrina chama boca da lei, que declama o texto frio da norma”, disse ao senador Marcos Rogério (DEM-RO). A Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o desembargador disse que “a competência para a construção das normas é do Poder Legislativo. O meu perfil é de preservação de competências. A postura do magistrado é aplicar a lei vigente naquele momento”. Aparentemente, são afirmações que dão a entender uma postura positiva de não interferência. Mas como, então, o “garantista” seria um “ativista”? Muitas vezes, o Judiciário “cria normas” alegando supostas omissões dos demais poderes, ainda que tais omissões não existam. Estaria aí uma brecha para o “ativismo garantista”? Uma pista para a resposta pode estar no fato de o comentário sobre o “ativismo” ter vindo após um comentário de Marcos Rogério sobre o fato de o Congresso se pronunciar sobre um tema também quando decide não apreciar ou rejeitar um projeto de lei.
E não há garantismo que pareça convencer Kassio Marques a defender enfaticamente algumas liberdades básicas. O desembargador até mostrou preocupação com ataques à liberdade de expressão motivados pelo combate às fake news, mas também disse que “devemos, não o Poder Judiciário, mas o Estado brasileiro, inibir as fake news. A preocupação que deve ter o Judiciário é na aferição desses conteúdos”.
Em resumo, os breves acenos em defesa da independência entre poderes e da dignidade da vida desde a concepção são muito pouco para dissipar a insatisfação e as dúvidas que permanecem quanto à postura que Marques terá no Supremo Tribunal Federal, principalmente no campo do combate à corrupção. Em alguns casos, por limitação legal; em outros, porque faltou uma atitude mais incisiva de senadores diante de respostas esquivas; e, finalmente, porque, quando o desembargador foi mais enfático, defendeu posições bastante questionáveis que o deixam muito longe da postura necessária a um ministro do Supremo, reafirmando a convicção de que esta foi uma grande oportunidade desperdiçada por um presidente da República que chegou ao posto com uma plataforma de dureza contra a corrupção e conservadorismo moral.