O norte-americano Hadi Matar leu “apenas duas páginas” de Os versos satânicos, de acordo com entrevista dada por ele a um jornal nova-iorquino; e nem sequer era nascido em 1989, quando o aiatolá Khomeini lançou sua sentença de morte contra o autor do romance, Salman Rushdie. Isso não o impediu de tomar para si a missão de executar o decreto (fatwa) do líder religioso iraniano. Felizmente – e para a surpresa de Matar –, Rushdie sobreviveu às várias facadas sofridas durante uma palestra em Nova York, no último dia 12, e vem se recuperando; segundo seu agente, o escritor já não respira por aparelhos, está conversando e “contando piadas”.
A expressão “versos satânicos” se refere a um episódio em que Maomé, enganado pelo demônio, teria feito elogios a divindades pagãs da cidade de Meca – esta história, que muitos muçulmanos hoje consideram apócrifa e uma invenção de adversários do Islã para desacreditar Maomé, faz parte de uma subtrama do livro de Rushdie; outros elementos do romance também foram considerados ofensivos ao islamismo. Mesmo antes do decreto de Khomeini, o livro já tinha sido banido em vários países africanos e asiáticos, além de ter levado a protestos no Reino Unido, onde Rushdie vivia. Em 14 de fevereiro de 1989, a fatwa foi lida na rádio iraniana. “Convoco todos os bravos muçulmanos, onde quer que estejam, a matá-los [Rushdie e outros responsáveis pela publicação do livro] sem demora”, dizia parte do decreto; entidades islâmicas ofereceram (e ainda oferecem) recompensas milionárias pela morte de Rushdie.
Mesmo em nações com leis que punem ofensas ao sentimento religioso, eventuais investigados e acusados respondem diante da Justiça, com direito à plena defesa e ao devido processo legal, e não podem estar sujeitos a execuções sumárias ou justiçamentos
Não faltaram muçulmanos dispostos a cumprir a vontade do aiatolá: o tradutor de Os versos satânicos para o japonês foi assassinado; o editor norueguês foi ferido, mas sobreviveu; dezenas de intelectuais foram mortos em um hotel na Turquia, incendiado durante um ataque cujo alvo era o tradutor do livro para o turco; diversas livrarias foram atacadas em vários países. Apesar de o governo iraniano ter afirmado, em 1998, que não patrocinaria tentativas de assassinato de Rushdie, a fatwa jamais foi revogada – e há dúvidas sobre uma possível ligação entre Hadi Matar e o Irã, embora todos os envolvidos neguem tal relação. De qualquer forma, o ataque a Rushdie certamente foi recebido com satisfação em Teerã, e o regime islâmico iraniano culpou única e exclusivamente a própria vítima e seus apoiadores.
A fatwa contra Rushdie e todos os seus desdobramentos podem, ainda, ser considerados o marco inicial de uma série de outros ataques sem relação com Os versos satânicos, mas que eram respostas a publicações percebidas como blasfemas: os protestos e mortes relacionados à divulgação de charges de Maomé por um jornal dinamarquês e, especialmente, o ataque à redação da revista satírica francesa Charlie Hebdo, em janeiro de 2015. Trata-se de um “subgrupo”, se é possível descrever dessa forma, de um problema muito mais amplo: o do terrorismo islâmico, que vem assombrando o mundo ocidental já há muito tempo.
Nas pouco mais de três décadas que se passaram desde que Khomeini ordenou o assassinato de Rushdie, as reações de muitos muçulmanos no mundo ocidental demonstram o tamanho do problema a enfrentar. Mesmo em nações com leis que punem ofensas ao sentimento religioso, eventuais investigados e acusados respondem diante da Justiça, com direito à plena defesa e ao devido processo legal, e não podem, de forma alguma, estar sujeitos a execuções sumárias ou justiçamentos. No Ocidente, Rushdie não escapou da crítica de escritores, políticos e líderes religiosos, incluindo cristãos e judeus, mas nenhum deles jamais endossou a fatwa ou considerou que o conteúdo de Os versos satânicos validasse o assassinato do escritor. No entanto, adeptos do islamismo nascidos e criados em países ocidentais – ou seja, que passaram toda a vida sob um regime democrático e de respeito às liberdades individuais – se mostraram incapazes de ter a mesma compreensão e reconhecer que a justiça pelas próprias mãos não é resposta aceitável ao que se considera uma blasfêmia. Não há multiculturalismo que justifique “respeito” a esse tipo de radicalismo que ameaça frontalmente os valores ocidentais e, por isso mesmo, não pode vencer a batalha contra eles.