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Editorial

Saudosa República

As equipes de transição entre governos estão a postos para administrar o vácuo desses dias pós-eleições. É de lei. Cabe a elas deixar as gavetas em ordem, para que ali fique bem-posta a democracia e janeiro possa raiar com um mínimo de paz em caixa. Como em toda liturgia solene, o momento se cerca de um vocabulário cintilante, do qual não faltam termos como "desenvolvimento", "sustentabilidade", "transparência" e "espírito republicano", entre outros que brindam com alguma dignidade o ramerrão da política.

Cabe falar sobre o "espírito republicano". Essa expressão se impõe, por moda, cacoete ou impulso, saborosa como uma calda de açúcar. É fato que termos como "república" e "republicano" não gozam do mesmo sentido no Brasil e nos Estados Unidos, o que nos livra aqui de discutir o movimento Tea Party e os maus dias do presidente democrata. Nossa República é de outra ordem: estabeleceu-se de forma inconclusa, com restrições à liberdade, pouco apreço pela igualdade e dispensando investimentos ralos para a educação.

Essa receita indigesta foi determinante para o destino nacional e, de sola, não ajudou a formar uma cultura política adulta, o que nos condena à Bacia das Almas. A palavra república, aqui, padece de uma espécie de mal do século – guarda um misto de tristeza de banzo com doença incurável. O que se diz sobre ela não reflete a alegria e a dignidade que o vocábulo guarda em sua etimologia, provocando um caso flagrante de incoerência linguística e de absurdo filosófico.

A insustentável leveza e a baixa reputação da "república" nessas plagas, que pena, a reduz a um termo impresso nos brasões, passaportes e diplomas. Por falta de uso e de coerência, a palavra pode ser aposentada compulsoriamente, fadada a não passar de uma pesquisa escolar na Enciclopédia Barsa.

Não bastasse, os tempos modernos conspiram contra a república. Seu inimigo: o individualismo, o consumismo, o culto aos prazeres privados. Sem considerar esses pontos, as cerimônias de transição em Brasília correm o risco de se reduzir a um teatrinho de escola em que falar de "espírito democrático" é truque. Puro efeito.

Em nossos dias, a ideia de república padece diante da baixa "cidadania ativa" e da dificuldade crônica de cuidar do bem público. O historiador carioca Marcelo Jasmin figura entre os que já se debruçaram sobre essa tragédia. Para explicá-la, recorreu ao magistral Da democracia na América, escrito pelo francês Alexis de Toqueville em meados do século 19.

No livro, Toqueville expressou seu fascínio diante do homem comum que, nos Estados Unidos, participava com o braço e a voz na consolidação da república. Ali, traduziu o impacto diante de uma sociedade organizada em torno do ideário da liberdade e da prosperidade. Em resposta, refundou um conceito que vinha do mundo grego, mas que já parecia mofado demais para atender às demandas do Mundo Novo.

O problema agora é que a distância teima em separar o século 21 dos bons ventos da América em formação. Não é difícil explicar por quê. Inexiste república sem a presença do cidadão interessado, movido unicamente pela defesa do bem comum. Resta saber se é necessário que esse cidadão renasça para que a palavra república recupere seu lugar no dicionário.

Eis o pântano. A tecnocracia encaixotou e lacrou o discurso político, transformando-o num linguajar digno de uma sociedade secreta. A coisa pública, de conceito simples, passível de ser ensinada em paralelo às primeiras letras e às noções de higiene, transformou-se num emaranhado saído da boca de um Odorico Paraguassu. Em suma – há quem prefira a surdez.

A república, a pobre, esmorece por causa do pouco crédito merecido pelos políticos e pela política, vistos como um satélite artificial que gravita em torno da realidade, mas sem iluminá-la de fato. É um universo de negociatas, conchavos e – o pior – um universo do qual não se pode participar, a não ser pelo voto, de forma sazonal, fazendo do homem político um pacato picador de fumo agachado na frente da choupana.

O distanciamento do "espírito republicano" não é, contudo, apenas de ordem intelectual. É também de ordem pragmática. O mundo caminhou para a afirmação do indivíduo, dos espaços restritos, do consumo, entre outros benefícios umbilicais que pouco têm a ver com o coletivo. São muitas e atraentes as promessas de felicidade miúda, com as quais as benesses da vida republicana mal conseguem rivalizar.

República, nessa lógica hedonista, vira o lugar onde são garantidos os direitos próprios, sem a ingerência do estado e de quem quer que seja. O que sobra desse desmanche é a indiferença. Depois dela, mora a treva.

Eis a questão – como garantir o espírito republicano na era do "eu sozinho". O historiador Marcelo Jasmin, com Tocqueville a tiracolo, lembra que é uma lenha: não se sabe quem há de sacrificar a independência privada em nome das necessidades públicas. A maioria há de chamar isso tudo de estorvo – afinal, está todo mundo ocupado em trabalhar para pagar contas, um argumento a gosto.

Mas se assim for, morre aquilo que nos faz humanos. Sem valores democráticos e republicanos o que abandonamos é a ideia de sociedade. Vai-se a "paixão pública". Uma boa medida é que os governos não nos tratem como crianças, tuteladas e censuradas. Que sejamos provocados a governar o dia e a de fato participar – ainda que nas pequenas repúblicas de nossos bairros. O contrário disso é a alienação, o despotismo e um verbete perdido na enciclopédia.

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