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Editorial 1

Sem absolutismo

Nem tanto aos índios, nem tanto à exploração predatória. Essa é a súmula da decisão que o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou na última quinta-feira a respeito da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima – uma área de 1,7 milhão de hectares (quase 10% do tamanho do Paraná) disputada por grupos indígenas e produtores de arroz que ocupam a região. Por dez votos a um, o STF decidiu que a reserva será contínua, os agricultores terão de deixá-la, mas em compensação nem os índios nem a Funai poderão impedir que a União entre nas terras para defender as fronteiras ou construir obras. Até mesmo a exploração dos recursos hídricos e minerais poderá ser feita pelo governo ou por particulares devidamente autorizados.

Não se trata de uma solução que possa ser classificada simplesmente de salomônica. A parábola bíblica que lembra o episódio em que o rei Salomão teria sugerido dividir em duas partes um bebê disputado por duas mães ganharia sentido extremamente pejorativo se aplicado à questão da Raposa Serra do Sol. Aqui, prevaleceu a inteligência, a racionalidade e o bom senso dos ministros da Suprema Corte: reconheceram o direito da população indígena de manter como seu o território que ocupam talvez há milênios, mas não desconheceram que equivaleria à instituição de uma nação soberana se sobre a área tivessem os índios poder absoluto.

Este, na verdade, é o foco principal da polêmica que há décadas se trava no país sobre o qual o STF acaba de se manifestar. De um lado dessa polêmica estão os defensores radicais da preservação dos hábitos e da cultura indígenas, que veem na criação de amplas e intocáveis reservas territoriais o único modo de garantir tal objetivo; de outro, aqueles que consideram que a demarcação de extensas reservas constituem-se em empecilhos ao desenvolvimento econômico ou à segurança nacional.

Claro, há entre os dois lados os sinceramente bem-intencionados e os que, a pretexto da defesa de uma causa ou de outra, são movidos por interesses escusos. Há os que instrumentalizam política e ideologicamente a defesa da causa indígena; os que servem dessa causa de aparência nobre para favorecer ambições estrangeiras sobre as riquezas naturais da região, algumas vezes representadas até mesmo por missões religiosas; e há os que lutam contra demarcações para, sem pudor e consciência de qualquer espécie, apossar-se de áreas para exploração madeireira ou agropecuária. A nenhum desses lados – bem ou mal-intencionados – cabe razão.

O STF entendeu perfeitamente esta divisão, mas deu mostras de que ficou acima dela. Tratou de colocar em primeiro lugar o interesse nacional sem, ao mesmo tempo, agredir o legítimo, respeitável e inalienável direito à própria sobrevivência das nações indígenas e de sua cultura. Reconheceu o processo histórico que definiu as fronteiras do país, que conformou o território de um só povo, do qual fazem parte as etnias indígenas. Reconheceu que a essa população se deva reservar parte desse território, sem contudo dar a ela a condição de proprietária absoluta. E reconheceu, por fim, que, salvo por motivos estratégicos de interesse nacional (como a construção de hidrelétricas ou exploração mineral), a reserva deverá permanecer intocável do ponto de vista da exploração agrícola ou florestal.

A decisão do STF, tomada em razão do caso concreto e específico da Raposa Serra do Sol, com certeza serve para delinear uma política nacional a respeito de tão antiga polêmica envolvendo a questão indígena. Cumpre, assim, o Supremo, novamente, um papel que deveria ser do Congresso.

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