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Ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo.

Durante a campanha eleitoral de 2014, a então candidata à reeleição Dilma Rousseff tornou célebre a expressão “todos soltos”, em uma referência a envolvidos em escândalos de corrupção da era tucana. A expressão já podia ser aplicada também aos mensaleiros petistas, depois dos indultos de Natal assinados pela própria Dilma em 2014 e 2015, e agora volta a se tornar realidade: o último político denunciado e condenado na Lava Jato que ainda permanecia atrás das grades, em regime fechado, está em casa.

Na sexta-feira, dia 16, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal revogou a última ordem de prisão preventiva que ainda vigorava contra o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, transformando-a em prisão domiciliar. O voto decisivo foi de Gilmar Mendes, que formou a maioria com André Mendonça e Ricardo Lewandowski; foram vencidos Kassio Nunes Marques e Edson Fachin. Cabral estava na cadeia desde 2016, e tem acumuladas 23 condenações que somam 430 anos de prisão, pelos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, fraude em licitação, formação de quadrilha e organização criminosa. E, apesar dessa lista tão extensa, há uma série de fatores que impedirão que Cabral pague como deve essa dívida com a sociedade.

Qualquer brasileiro com um senso básico de justiça percebe que há algo de muito errado quando um político com lista tão extensa de condenações, algumas delas já com a análise da culpabilidade finalizada, não está na cadeia pagando por seus crimes.

De início, é preciso ressaltar que a grande maioria das ações que resultaram em condenações do ex-governador fluminense ainda não foi julgada pela segunda instância, o que por si só já indica que a Justiça tem sido morosa mesmo em casos de enorme repercussão pública. Mas Cabral já tem contra si ao menos algumas condenações por colegiados: em maio de 2018, o TRF4 confirmou uma pena de 14 anos e 2 meses de prisão imposta pelo então juiz Sergio Moro em um caso de propina envolvendo um contrato entre a Petrobras e a empreiteira Andrade Gutierrez; e, em dezembro de 2018, o TRF2 aumentou para 45 anos e 9 meses a pena de Cabral na denúncia oriunda da Operação Calicute, desdobramento da Lava Jato no Rio.

Na maioria esmagadora das nações democráticas do mundo, isso bastaria para que Cabral já tivesse como certas algumas décadas na cadeia; afinal, a análise da culpabilidade estava encerrada, com a sentença de primeira instância devidamente analisada e confirmada pelo TRF, em respeito ao duplo grau de jurisdição, ao devido processo legal e à ampla defesa. Mas não no Brasil, onde o Supremo ressuscitou, em 2019, a jabuticaba jurídica da “prisão em quarta instância”, garantindo que qualquer réu com bons advogados, que conheçam todos os meandros do labirinto processual brasileiro, demore décadas para enfim começar a cumprir sua pena – isso se um dia vier o trânsito em julgado e o condenado efetivamente for para a cadeia.

É exatamente este o caso de Sérgio Cabral, pois nenhuma das dezenas de ações nas quais ele é réu ou já teve condenações transitou em julgado. O ex-governador apenas seguia preso porque havia contra ele um mandado de prisão preventiva, e aqui começam os potenciais problemas desse tipo de situação. O artigo 312 do Código de Processo Penal prevê este instrumento “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”, ou seja, há condições específicas que precisam ser preenchidas para alguém ser mantido preso desta forma. O primeiro perigo é o do abuso: a prisão preventiva não pode funcionar como forma de “compensar” a ausência da prisão em segunda instância – e o dizemos como princípio, sem formar juízo de valor sobre o caso específico de Cabral. O segundo risco é o de deixar o destino do condenado submetido a questões de interpretação: basta que algum magistrado considere que as condições para a manutenção da prisão preventiva não estão postas, ou que um dia existiram, mas não existem mais, para que ela seja revogada – foi o que fez a Segunda Turma do STF.

Qualquer brasileiro com um senso básico de justiça percebe que há algo de muito errado quando um político com lista tão extensa de condenações, algumas delas já com a análise da culpabilidade finalizada, não está na cadeia pagando por seus crimes. Mas isso só ocorre graças a uma série de equívocos que passa por um STF incapaz de reconhecer que o início do cumprimento da pena após condenação por colegiado não viola nenhuma garantia constitucional, e também por um Congresso que não se move para alterar a lei e colocar a prisão em segunda instância na lei e na Constituição de forma cristalina, que não permita interpretações dúbias em benefício dos bandidos. O fim da temporada de Sérgio Cabral na cadeia é mais um lembrete de que a sociedade precisa voltar a pressionar seus representantes no Legislativo, para que façam deste tema uma prioridade em 2023. Não se trata de “linha-dura”, nem de “punitivismo”, mas de mero bom senso e do fim da impunidade.

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