Em poucos dias, o bairro de Campo de Santana vai abrigar oficialmente a primeira aldeia urbana do Sul do país a Kakané-Porã, nome que em bom caingangue e guarani significa "fruto bom da terra." O projeto é da prefeitura, custou cerca de R$ 800 mil e põe fim a um impasse que já dura seis anos a desocupação da área de proteção ambiental (APA) conhecida como Reserva do Cambuí, no Uberaba, onde vivem 20 das 35 famílias beneficiadas pelo novo programa municipal. As outras 15 estão dispersas pelos bairros de Curitiba, em condições bastante inferiores às que teriam numa das 595 TIs nacionais as terras indígenas.
As condições de habitação no Cambuí são lastimáveis. A área de mata, rente ao Rio Iguaçu, é escura e úmida, além de não permitir plantio sustentável inclusive do milho, cujo cultivo figura entre as mais sólidas tradições dos povos da floresta. O local abriga cerca de 300 pessoas e está tão avariado quanto a favela do Icaraí, vizinha da tribo. Seu caminho de acesso, a Avenida Comendador Franco na altura do portal de São José dos Pinhais se mostrou uma ameaça constante para as crianças da comunidade, a cada vez que precisam se deslocar para a escola.
Some-se a esses senões a invisibilidade. À revelia do esforço do cacique Carlos Luiz dos Santos, o Kajer; da vice-cacique Jovina Donato de Oliveira, a Renh-ga; e do líder Alcino de Almeida, o Kakupri, o Cambuí não caiu nas graças dos curitibanos. Com exceção de caravanas de estudantes em visitas guiadas vez em quando , a interação da tribo com a cidade não aconteceu, frustrando o maior desejo dos ocupantes: transformar a área num centro cultural e de venda de artesanato, atividade que é fonte de renda de 90% dos moradores.
A expectativa dos indígenas é que a nova aldeia, Kakané-Porã com 44 mil metros quadrados , lhes seja uma terra mais generosa, incluindo-os em definitivo no espaço urbano. As 35 casas, onde vão viver cerca de 150 pessoas, têm 45 metros quadrados e foram pensadas para servir como luva às necessidades indígenas. Não se fez cerca entre os terrenos; as varandas são abertas garantindo a prática do artesanato na própria moradia; e há uma área comum, espécie de taba para as danças e assembléias.
O grande mérito do programa é o fato de mexer com o lugar social dos indígenas do asfalto, categoria formada por cerca de 150 mil pessoas em todo o território nacional, mas ainda hoje uma "realidade não-assumida", nos dizeres do indigenista Edívio Battistelli, autoridade no assunto no Paraná. É fato. Gente como Kakupri, Kajer e Renh-ga têm poucos instrumentos para serem percebidos nas metrópoles onde a imagem do índio ainda é a do mendigo da rodoviária.
No caso da capital, eles se confundem a uma outra população a dos mais de 200 mil curitibanos que moram nas ocupações irregulares e vivem às voltas com o problema da regularização fundiária. Sem identidade definida, a cidade para eles é menos espaço de troca e mais espaço de competição, um avesso de suas práticas ancestrais.
A edificação de Kakané-Porã tende a reverter esse processo de periferização do indígena fenômeno já registrado em cidades como Campo Grande, Manaus e São Paulo , alçando-o à condição de "cidadão diverso". Battistelli lembra que essa conquista obedeceu a uma lentidão atroz. Foi preciso vencer a idéia retrógrada do índio como incapaz, e a de que suas práticas são estacionárias. "Eles não são estanques. Não podemos submetê-los a uma redoma", diz, lembrando o essencial: esses povos têm direito à cidade.
A propósito
A condenação dos caingangues, guaranis e descendentes de xetás três etnias que formam o Cambuí ao anonimato da periferia é uma forma sofisticada de aniquilamento. Sem um espaço adequado na metrópole, corre-se o risco de reduzir a zero os ganhos de uma história que conheceu a tragédia, mas procura a redenção.
Os índios conseguiram, por exemplo, aumentar em número. Battistelli observa que a população indígena no Paraná era de 2,6 mil pessoas em 1976 e hoje está na casa dos 14 mil, divididos em 42 espaços, ou seja, quadruplicou. Para o IBGE, a conta é ainda maior: 32 mil paranaenses se autodeclararam indígenas no último censo, apontando para outro fenômeno o do reconhecimento das raízes índias.
A Reserva do Cambuí, inclusive, é uma boa amostragem dos avanços da comunidade indígena no Brasil. Pesquisa feita pela Cohab-CT junto aos moradores aponta que 40% dos índios estudam; 20% cursaram ensino médio e 62,5% das famílias têm entre 2 e 4 pessoas, aproximando-se do padrão médio de escolaridade e de crescimento dos brasileiros.
A progressão nos anos de estudo, contudo, ainda não provocou mobilidade. A pesquisa mostra que no Cambuí apenas quatro casais têm renda maior de R$ 1 mil; que 40% são autônomos e que 32,7% não trabalham. Uma das explicações para esse "crescimento sem desenvolvimento" é de ordem cultural. São comuns, particularmente entre os jovens, relatos de inadequação ao mundo do trabalho oferecido pela cidade. Não raro, a falta de jeito em lidar com certos códigos urbanos os empurra para a informalidade.
Por força da tradição, os ganhos "sem carteira" são divididos com a família e com os mais necessitados do grupo, formando um núcleo diferenciado. Os índios são modelo de sociedade solidária, formam um ótimo espelho social. A questão é saber o quanto desse espírito sobrevive diante da exposição à pobreza extrema, à violência e às agruras do mercado. Resta desejar políticas públicas que dêem conta não só da integração urbana quanto da sobrevivência de um modelo associativo nobre, garantindo à cidade seu maior bem: a diversidade. Kakané-Porã tem a ver com isso. Cambuí, nunca mais.