Ontem, 10 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento sobre a validade do chamado inquérito das fake news. Desde que a data foi estabelecida, notícias na imprensa e comentários feitos por ministros permitiam antever a tentativa de constituir uma maioria a favor da tese da necessidade de “saneamento” do inquérito, aparando algumas de suas irregularidades mais flagrantes, num esforço de conferir legalidade ao processo, integrar de fato o Ministério Público Federal (MPF) e as autoridades policiais competentes e delinear um objeto bem definido, que oriente o curso futuro das investigações.
Na primeira sessão, fizeram sustentação oral o Procurador Geral da República (PGR), Augusto Aras, e o Advogado Geral da União (AGU), José Levi. Votou somente o relator da ação, ministro Edson Fachin. O julgamento será retomado na próxima quarta-feira. Tanto o PGR quanto o AGU defenderam a legalidade do inquérito, mas ressaltaram a importância de “balizas” para sua continuação. Fachin também defendeu sua validade, mas propondo que o seu objeto seja limitado a ações que ofereçam riscos à independência do Poder Judiciário. Assim, a tese de um possível saneamento começa a tomar corpo e pode ser que vejamos realmente uma maioria se formando nesse sentido, talvez até um consenso.
Seria essa a solução mais correta, a mais conforme à Constituição? Não nos parece.
Logicamente, não se trata de negar a importância do tema em questão. O STF não está se debruçando diante de uma fantasmagoria, como muitos de seus críticos tentam fazer parecer. Há indícios importantes da existência de redes envolvidas em calúnia e difamação de autoridades públicas. A materialidade, portanto, é plausível e há relevantes suspeitas quanto à autoria. O tema é de suma relevância para a estabilidade política da democracia brasileira, e, até para que se afaste qualquer dúvida, é crucial levar adiante uma investigação a respeito. Particularmente, o tema adquire ainda mais importância em face da suspeita de existência de um suposto gabinete do ódio, organização incrustrada no Palácio do Planalto, que atuaria como verdadeira máquina de assassinato de reputações, por meio de perfis anônimos, robôs e sites de notícias falsas.
Pela gravidade do assunto, é compreensível que tenha havido certa guinada na opinião de um sem número de atores públicos de destaque, de juristas a políticos, passando por importantes meios de comunicação, em prol de sua continuidade, em que pese o reconhecimento dos vícios de origem no processo. Em meio a uma grave crise institucional, muitos parecem ver na peça um instrumento real de defesa da democracia contra o avanço do impulso autoritário que ora se volta contra o STF. Segundo essa visão, presente nas sustentações da AGU e do PGR, assim como no voto do relator, os vícios seriam mais formais do que substanciais, portanto, passíveis de saneamento.
Precisamente porque o tema é muito sério, a investigação precisa ser conduzida da maneira mais escorreita possível
Contudo, é pela relevância mesma do tema que importa ter uma atenção especial para que não se deixe dúvidas a respeito da regularidade da investigação. Ou seja, precisamente porque o tema é muito sério, a investigação precisa ser conduzida da maneira mais escorreita possível, mais isenta de suspeita de quaisquer irregularidades. É lamentável que uma questão como essa, que afeta a essência mesma da República, precise ser investigada. Mas se existem suspeitas, o que não se pode é deixar de investigá-las. Porém, é necessário ter em mente o risco que um procedimento desses tem de gerar feridas gigantescas, de difícil cicatrização. Se, por exemplo, se chegasse a conclusões que afetassem o atual mandato, dúvidas sobre a legalidade do procedimento poderiam levar inúmeros brasileiros de bem a um inconformismo gigantesco e a um ceticismo radical contra a própria democracia.
Além disso, se considerarmos os atuais vícios de origem irregularidades meramente formais, teremos esvaziado de sentido a distinção entre as irregularidades formais e aquelas substanciais. A gravidade dos vícios de origem do inquérito tem sido unanimemente apontada por vários juristas, procuradores e estudiosos do Direito. A relativização disso em face de um problema que se procura combater significa, neste caso, o abandono completo do princípio de que os fins não justificam os meios. Se apenas por que o pretenso “inimigo” é alguém cuja conduta consideramos muito reprovável nos damos ao luxo de abandonar, não meras regras processuais mas princípios basilares da Justiça, impomos não uma vitória contra o mal, mas uma derrota ao Estado Democrático de Direito. A força da democracia estriba precisamente no seu valor moral, na convicção de que, salvo hipóteses extremas, em que a normalidade institucional já foi conspurcada, a solução absolutamente conforme à Constituição é sempre a melhor, ou mais fortemente ainda, a única.
Aberto em 14 de março de 2014 pelo presidente Dias Toffoli, com relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o inquérito tem por objetivo alegado investigar a existência de fake news, ameaças e denunciações caluniosas, difamantes e injuriantes, que atingem a honra e a segurança dos ministros e seus familiares. Desde o seu início, vem servindo para quase tudo. Fundamentou atos de censura à imprensa, a busca e apreensão na residência de pessoas que levantaram hashtags contrárias ao trabalho do Supremo, o bloqueio de contas nas redes sociais de deputados e mesmo a investigação do ex-PGR, Rodrigo Janot. Porém, não é esse o aspecto decisivo, até porque muitos desses abusos poderiam, sim, em tese ser evitados daqui para a frente e corrigidos ao longo da condução do inquérito. Observe-se quanto a isso, contudo, que um inquérito com vícios de origem como os apontados por todos desde que foi instaurado não é só injusto. Ele tende a ser desordenado em si mesmo, o que se reflete nos abusos acima mencionados. Não é à toa que, no último dia 4, em manifestação enviada ao STF, o PGR Augusto Aras tenha afirmado que, das cerca de 10.000 páginas do inquérito, somente 2% diz respeito a pessoas com prerrogativa de foro. O fato do inquérito ter servido para investigar pessoas as mais variadas, por motivos os mais diversos, muitas delas sem evidente conexão entre si, é sinal de que há uma dificuldade evidente do relator em dar um sentido coerente a toda a peça, que parece mudar de alvo constantemente. Possivelmente, se o processo tivesse sido conduzido como manda a Lei, as autoridades policiais e o Ministério Público garantiriam lógica interna e coerência ao processo como um todo.
Os problemas legais envolvidos são inúmeros. A começar pela justificativa de sua instauração, passando pelos riscos de atentados à liberdade de expressão. Mas não é necessário rever estes pontos e todos os demais, já amplamente cobertos pela imprensa e pela crítica especializada.
Importa, sim, observar mais uma vez que parte desses vícios de origem poderiam, sim, ser sanados; mas não todos. Entre os que poderiam, se encontra, por exemplo, o problema da ausência de um objeto específico. Um inquérito foi aberto com uma delimitação genérica sobre aquilo que se pretendia investigar. Desafiado em juízo, nada impede que se venha a delimitá-lo com precisão. Se isso vale para a delimitação do objeto, o mesmo não se pode dizer para vários das demais irregularidades, algumas das quais estão na natureza mesma desse processo. Entre estas devem-se ressaltar a ausência de competência constitucional - com a consequente quebra do princípio do devido processo legal e do juiz natura - e o da quebra da imparcialidade, com a mesma instituição representando simultaneamente o papel de vítima, investigador e juiz.
Destarte, acreditamos que soluções conciliatórias no julgamento da validade do inquérito não atendem às demandas por segurança jurídica e legalidade que inspiraram nossas críticas até aqui. Para afastar quaisquer suspeitas, o STF deveria agir por uma via realmente mais estreita e técnica, invalidando o presente inquérito e fazendo os encaminhamentos e sugestões necessárias para que uma investigação justa possa ser iniciada na instância adequada, seguindo os devidos parâmetros legais.
Esperamos que os demais ministros possam votar em nome da invalidação do inquérito, o que em nada diminuiria a importância das investigações conduzidas até aqui. Às vezes, é melhor recuar, para poder avançar com calma, da maneira mais correta. É o que pede a democracia nesse momento.