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O ministro Alexandre de Moraes, do STF.
O presidente do TSE e ministro do STF, Alexandre de Moraes.| Foto: Carlos Moura/SCO/STF

O ataque frontal do Poder Judiciário à liberdade de expressão e outras garantias democráticas no Brasil parece sempre pronto a romper novos limites. Quando aquilo que meses atrás parecia inimaginável já se torna corriqueiro – é o caso, por exemplo, da censura prévia sem nenhum motivo razoável que a justifique –, ministros e juízes partem para novas investidas, violando outras liberdades ou beirando a paranoia.

É o que ocorreu, por exemplo, com os jornalistas e comentaristas Rodrigo Constantino, Guilherme Fiuza (ambos colunistas da Gazeta do Povo) e Paulo Figueiredo (empresário e comentarista da Jovem Pan News). Todos eles tiveram suas contas em redes sociais sumariamente suspensas, mas no caso de Constantino e Figueiredo, ambos radicados nos Estados Unidos, a Justiça resolveu ir além, cancelando-lhes o passaporte e bloqueando suas contas bancárias no Brasil. Se o direito constitucional à liberdade de expressão da dupla já havia sido severamente prejudicado pelo banimento das mídias sociais, agora é seu direito de ir e vir que é violado por meio do cancelamento do passaporte, medida que faz de seu alvo um “prisioneiro” no país onde vive; não pode nem voltar ao Brasil, nem ir para qualquer outro país; Constantino só mantém essa possibilidade por ter dupla cidadania – e, mesmo assim, tanto ele quanto Figueiredo também estão proibidos de deixar o Brasil caso entrem com passaporte de outro país.

Já o bloqueio das contas bancárias, se já era uma aberração no caso de empresários multimilionários como os que têm sido alvo da perseguição de Alexandre de Moraes (e mesmo assim o desbloqueio já ocorreu), ainda mais o é quando aplicado a jornalistas cujo poder econômico é muito menor. Para adicionar mais um contorno de surrealidade e arbítrio a tudo isso, não se sabe nem mesmo de quem partiu a ordem judicial no caso de Fiúza e Figueiredo – o STF não confirma que as decisões tenham saído da corte; de certo, apenas que as decisões contra Constantino vieram da caneta de Moraes.

Além da liberdade de expressão, agora o direito de ir e vir e o direito à privacidade são depredados pela Justiça de forma completamente desproporcional. Mesmo assim, a sociedade e a opinião pública parecem ainda anestesiadas

O relator dos inquéritos abusivos das fake news, dos “atos antidemocráticos” e das “milícias digitais”, aliás, é também o autor de outra decisão que faz do Brasil o tipo de Estado policial semelhante às ditaduras comunistas do leste europeu ou dos totalitarismos distópicos de vigilância permanente. Segundo o portal Metrópoles, Moraes ordenou a quebra de sigilo telefônico e telemático de oito investigados, cujos nomes se desconhece, e também de todas as pessoas com quem eles tenham tido contato algum contato – no caso de ligações telefônicas, desde 2017. Trata-se de uma “quebra de sigilo no atacado” que tem consequências catastróficas para os direitos e liberdades no Brasil.

O direito à privacidade é protegido pelo inciso X do artigo 5.º da Constituição, e o inciso XII do mesmo artigo acrescenta: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. A lei que regulamenta este trecho é a Lei 9.296/96, dita Lei de Interceptação Telefônica. Ela afirma explicitamente em seu artigo 2.º, inciso I, que a interceptação só pode ocorrer se “houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal”. Ainda que a interceptação (o chamado “grampo”) consista na gravação das conversas futuras, ocorridas após a decisão judicial, a doutrina tem entendido que os mesmos requisitos se aplicam à quebra de sigilo telefônico (a identificação dos números que ligaram ou receberam ligações) e, especialmente, à quebra do sigilo telemático (que permite o acesso ao conteúdo das conversas e e-mails). Ora, desde quando o mero ato de manter contato com alguém que está sendo investigado é “indício razoável de autoria” de infração penal? Aqui já fica demonstrada, de forma inequívoca, a ilegalidade dessa quebra de sigilo coletiva. E o segredo kafkiano que o Judiciário insiste em manter sobre todas essas investigações torna impossível a “demonstração de que a sua [da quebra de sigilo] realização é necessária à apuração de infração penal”, outro dos requisitos legais para a interceptação.

O cuidado legal se justifica: a privacidade é um bem tão precioso que é preciso haver motivos muito graves para que as autoridades tenham acesso às conversas alheias. Mas Moraes, com sua decisão, praticamente extingue esse direito no Brasil. Se a Polícia Federal passa a ter acesso a todas as conversas não apenas dos oito investigados, mas de todas as pessoas com quem eles tiveram contato em alguma ocasião nos últimos anos, não há limite para o tipo de material que os policiais passam a ter em mãos. A prática abusiva da “pesca probatória” já não tem fronteiras. Todo cidadão pode ter suas conversas devassadas, sendo tratado como potencial suspeito de algum crime que nem se sabe ao certo qual é, já que, ao que tudo indica, a única coisa realmente digna de sigilo no país são os inquéritos conduzidos por Moraes. Como agravante, ficam vulneráveis até diálogos que deveriam estar protegidos por uma camada adicional de sigilo, o funcional (com advogados, jornalistas, médicos ou psicólogos, por exemplo), e o STF já cometeu um erro grosseiro em 2017, ao publicar conversas entre o jornalista Reinaldo Azevedo e a irmã do então senador Aécio Neves.

Além da liberdade de expressão, agora o direito de ir e vir e o direito à privacidade são depredados pela Justiça de forma completamente desproporcional. Mesmo assim, a sociedade e a opinião pública parecem ainda anestesiadas; quando muito, fala-se em “risco de abusos”. Mas o abuso, o arbítrio, o estado de exceção não são um “risco”; eles já se tornaram realidade há muito tempo, mas uma realidade que parte significativa do país tolerou e segue tolerando (quando não elogiando) porque dirigida contra bolsonaristas. As liberdades, no Brasil, estão como o famoso sapo em água fervente, com magistrados elevando cada vez mais a temperatura sem que suas decisões recebam a merecida crítica de entidades outrora defensoras da democracia. Atividade de risco no Brasil de hoje não é apenas ter opinião e manifestá-la, quando tal opinião não está devidamente aprovada pelas instâncias que se tornaram “donas” do pensamento; basta trocar algumas palavras com quem ouse criticar essas instâncias para se tornar também um alvo. As polícias secretas soviética e alemã oriental não teriam feito melhor.

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