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Editorial

O Supremo quer ser o Grande Irmão

STF julgará recursos que questionam decisões de Moraes contra Bolsonaro e apoiadores
O ministro do STF Alexandre de Moraes. (Foto: Nelson Jr./SCO/STF)

Quando opiniões políticas emitidas em caráter privado se tornam motivo para mandados de busca e apreensão, e aqueles que as emitiram precisam comparecer diante da Polícia Federal, podemos muito bem dizer que já não estamos apenas diante de um “editor da sociedade”, nem de um “poder moderador” – expressões efetivamente usadas por membros do Supremo Tribunal Federal para descrever a própria corte –, mas do próprio Grande Irmão orwelliano, que pune até mesmo pensamentos considerados inconvenientes, no que o autor de 1984 chamou de “crimideia”. A operação policial contra oito empresários deflagrada na manhã desta terça-feira é um abuso sem precedentes na história recente brasileira – e, se usamos o termo “sem precedentes” no país dos inquéritos teratológicos que já renderam censura à imprensa e violação da imunidade parlamentar, é porque novos limites foram ultrapassados.

Em 17 de agosto, o site Metrópoles publicou reportagem afirmando ter acompanhado por vários meses as conversas de um grupo de WhatsApp que reúne empresários, alguns dos quais passaram a falar da possibilidade de um golpe de Estado em caso de vitória de Lula na eleição de outubro. “Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo”, teria dito José Koury, proprietário do shopping Barra World. “O golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo. [em] 2019 teríamos ganhado outros 10 anos a mais”, acrescentou André Tissot, do Grupo Sierra. Afrânio Barreira, dono da rede de restaurantes Coco Bambu, apenas enviou uma imagem de uma pessoa aplaudindo, em resposta à mensagem de Koury, mas não escreveu nada sobre golpe. No dia seguinte à publicação, uma série de entidades – algumas das quais usam o epíteto “pela democracia” para camuflar a defesa pura e simples de pautas alinhadas à esquerda – apresentou notícia-crime ao STF, pedindo também a quebra de sigilo telefônico e telemático dos empresários.

Se usamos o termo “abuso sem precedentes” no país dos inquéritos teratológicos que já renderam censura à imprensa e violação da imunidade parlamentar, é porque novos limites foram ultrapassados

Koury, Tissot e Barreira, no entanto, não foram os únicos a receber a visita da Polícia Federal: os mandados expedidos por Alexandre de Moraes também tiveram como alvos Ivan Wrobel, da construtora W3; José Isaac Peres, da Multiplan; Luciano Hang, da rede Havan; Marco Aurélio Raymundo (chamado “Morongo”), das lojas Mormaii; e Meyer Joseph Nigri, da Tecnisa, que são citados na reportagem, embora não falem em golpe – no máximo, eles fazem críticas à atuação do STF e conversam sobre urnas eletrônicas, o que apenas acrescenta uma nova camada de abuso ao ocorrido. Além disso, a Procuradoria-Geral da República afirmou não ter sido intimada a respeito das medidas tomadas por Moraes, o que, embora também seja ilegal, já não surpreende, pois a PGR tem sido habitualmente escanteada em tudo o que se refere aos inquéritos das fake news, dos “atos antidemocráticos” e das “milícias virtuais”; outra violação frequente nestes inquéritos, e que se repete agora, é a inclusão de pessoas que não têm prerrogativa de foro e, por isso, jamais deveriam estar sendo investigadas por ordem do STF.

Como o teor dos mandados permanece sigiloso – outra praxe de tais inquéritos, a ponto de nem mesmo os advogados de defesa de investigados terem acesso aos autos –, só se pode especular a respeito de quais seriam os crimes sob investigação, caso Moraes tenha se recordado da necessidade básica de apontar que leis estariam sendo violadas a ponto de justificar medidas cautelares. E isso nos conduz à questão central que envolve o enorme abuso da ação desta terça-feira. Podemos considerar as ideias de Koury e Tissot profundamente equivocadas – e a Gazeta do Povo, consciente da superioridade da democracia sobre qualquer outra forma de governo, condena veementemente qualquer defesa de um golpe –, mas seriam elas um crime? Pois dizemos, sem medo de errar, que considerá-las como tal é, mais uma vez, demonstrar desconhecimento completo da disciplina jurídica da liberdade de expressão no direito brasileiro, o que inclui o alcance dessa liberdade no país, a necessidade de protegê-la e quais os limites que a ordem jurídica lhe impõe; e este desconhecimento, infelizmente, é doença que se alastra velozmente, sem poupar nem mesmo formadores de opinião que deveriam estar na linha de frente da defesa da liberdade de expressão.

Toda a melhor doutrina jurídica, em larga medida pacificada neste aspecto, interpretando a Constituição, sempre afirmou que a manifestação de opinião, em geral, não é crime. Repare-se bem: em geral. Restrições são possíveis – pois a liberdade de expressão obviamente não é absoluta –, mas elas são pontuais. E quando se trata da liberdade de opinião, contraposta à liberdade de narração de fatos, essas restrições são ainda mais estritas. O Direito Penal, neste sentido, é cirúrgico e não abre espaço para definições abertas que permitam arbitrariedades. Dois destes casos em que a liberdade de expressão, no campo da opinião, não é absoluta são os de incitação e apologia ao crime, previstos nos artigos 286 (“Incitar, publicamente, a prática de crime”) e 287 do Código Penal (“Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime”). Se em tese as vítimas da arbitrariedade do STF cometeram algum crime, seria o de incitação ou apologia. E que condutas criminosas teriam sido ou incitadas, ou exaltadas, a ponto de configurar as hipóteses dos artigos 286 e 287 do Código Penal? Provavelmente, os crimes de golpe de Estado, previstos nos artigos 359-L e 359-M, acrescentados ao Código Penal pela Lei 14.197/21, dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Mas teriam os empresários efetivamente cometido apologia ou incitação à ruptura institucional?

A resposta é indubitavelmente negativa: nem apologia, nem incitação. E não se trata aqui, nem de longe, de uma interpretação benigna da atitude dos investigados, mas da leitura que qualquer jurista (e, ousamos dizer, qualquer pessoa minimamente hábil em interpretação) faria em circunstâncias normais, não fossem os ares de vale-tudo contra determinadas tendências políticas que se respiram hoje em dia. É evidente que em nenhuma das manifestações no WhatsApp houve dolo de incitação ou de apologia. O que há é a intenção de manifestar pura e simplesmente a própria opinião, pouco importa se razoável ou não, moralmente defensável ou não. Onde haveria incitação? É evidente que ela não está presente, por duas razões bem simples: primeiro, pelo próprio teor da mensagem, que expressa mais uma preferência que um incentivo; segundo, porque, ainda que houvesse um encorajamento à ruptura institucional – o que não indiscutivelmente não existiu –, a conversa não envolve pessoas com capacidade concreta de cometer um golpe de Estado, sendo uma troca de ideias entre empresários. Não há, ali, ninguém sendo estimulado a promover uma quartelada – e um elemento essencial para que haja instigação é que exista um instigado. O mesmo se diga em relação à apologia. O ânimo é evidentemente o de expressar uma preferência, entre pessoas privadas, em um grupo restrito, não o de, por meio de um enaltecimento da autocracia, ter em mente a intenção de provocá-la. Em resumo, não há dolo criminoso em nenhuma das manifestações, mas apenas a exposição de ideias em um ambiente privado. Qualquer pessoa com um entendimento mínimo de Direito Penal é capaz de perceber a ausência de crime, e qualquer magistrado teria rechaçado imediatamente, liminarmente, a possibilidade de investigar o grupo de empresários.

Quem toma ou aplaude medidas como a desta terça-feira alegando estar defendendo o Estado Democrático de Direito está, no fundo, contribuindo para a erosão do próprio Estado Democrático de Direito

Ou, ao menos, qualquer magistrado sem pretensões de estar acima da lei e que estivesse ciente da importância da liberdade de expressão, o que não é o caso de Alexandre de Moraes. “A liberdade de expressão não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito, inclusive durante o período de propaganda eleitoral”, afirmou dias atrás, ao tomar posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, em um dos trechos mais problemáticos de seu discurso. Ao contrário do que ele pensa, a democracia tolera, sim, muitos discursos que lhe sejam contrários, inclusive aqueles feitos de forma pública. Por mais que o ministro considere puníveis quaisquer “ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito”, o legislador brasileiro expressou de maneira inequívoca as poucas hipóteses em que a defesa de ideias contrárias à democracia pode ser proibida. Não se trata de uma omissão, mas de uma posição muito equilibrada, que reflete o entendimento de décadas de discussão sobre o tema. Não se proíbe, por exemplo, que alguém diga preferir uma ditadura; nem o debate sobre que forma de governo seria melhor, o democrático ou o autocrático; nem que alguém exponha o que considere serem pontos positivos de uma ditadura, real ou hipotética. Da mesma forma, qualquer um tem o direito de defender mudanças constitucionais, mesmo que absurdas. O combate a esses discursos se faz na arena das ideias, não pela persecução penal. Proíbe-se apenas a expressão que caracterize de fato incitação ou apologia de crime. Pretender o contrário é defender a instituição de um Estado policialesco, que fiscaliza todo tipo de manifestação, pública ou privada.

Se manifestar preferências políticas, ainda que deploráveis, em um ambiente privado se tornou motivo para ser enquadrado em inquéritos do STF e ser forçado a entregar celulares à Polícia Federal, é cada vez mais difícil afirmar que se vive em uma democracia plena no Brasil. Quem toma ou aplaude medidas como a desta terça-feira alegando estar defendendo o Estado Democrático de Direito está, no fundo, contribuindo para a erosão do próprio Estado Democrático de Direito, pois deseja instaurar um regime de vigilância e perseguição que não respeita limite algum.

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