Na decisão de terça-feira que desbloqueou o X após pouco mais de um mês de censura, o ministro Alexandre de Moraes achou interessante citar a ementa da decisão da Primeira Turma do STF que havia referendado o bloqueio, em 3 de setembro. Diz o texto: “1. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não permite que se confunda liberdade de expressão com liberdade de agressão ou inexistente censura com necessária proibição constitucional ao discurso de ódio e de incitação a atos antidemocráticos. 2. Toda e qualquer entidade privada que exerça sua atividade econômica em território nacional deve respeitar o ordenamento jurídico nacional e cumprir, de forma efetiva, comandos diretos emitidos pelo Poder Judiciário brasileiro”. Não só esta é uma afirmação no mínimo bastante imprecisa, como veremos, mas também faltou o que talvez seja o mais importante: lembrar que tais deveres, sendo aplicáveis a entidades privadas, mais ainda o são quando se trata dos agentes que têm por missão proteger e fazer cumprir a lei e a Constituição.
Antes de expor a hipocrisia dos que exigem respeito à lei enquanto a violam constantemente, analisemos a alegação sobre a impossibilidade de se confundir “inexistente censura com necessária proibição constitucional ao discurso de ódio e de incitação a atos antidemocráticos”. Salta aos olhos, aqui, mais uma vez, o truque do “discurso de ódio”, uma categoria não jurídica, sem definição nem em lei infraconstitucional, muito menos na Constituição Federal que a ementa invoca. Ou seja, tal “proibição constitucional” simplesmente não existe, constando aqui apenas como recurso retórico necessário à criminalização de qualquer discurso do qual a suposta vítima, um membro do Ministério Público ou um magistrado não goste.
Ainda que mantenha a autoridade legal para ordenar que os demais cumpram as leis do país e as decisões judiciais, um magistrado que ignora essas mesmas leis perde a autoridade moral
E, queira Moraes ou não, qualquer situação em que um indivíduo é sumariamente impedido de se manifestar sobre qualquer tema constitui, sim, censura – até mais que isso: dada a onipresença das mídias sociais, proibir alguém de usá-las é, como já lembramos em outras ocasiões, o equivalente à chamada “morte civil”. Tanto as leis brasileiras (incluindo o Marco Civil da Internet) quanto a melhor doutrina sobre a liberdade de expressão atestam que a forma correta de se lidar com um conteúdo criminoso é a remoção pontual, e não a proibição total de manifestações quaisquer em mídias sociais por meio da suspensão de contas e perfis, que configuram exatamente aquele tipo de censura prévia que a Constituição veda expressamente. Assim como, em uma democracia digna do nome, a veiculação de uma ou mais reportagens caluniosas, difamatórias ou injuriosas jamais seria motivo para um juiz ordenar o fechamento de um jornal, publicações eventualmente criminosas são reprimidas com sua exclusão e a responsabilização civil ou penal do usuário, e não com o banimento deste usuário do espaço virtual.
Isso nos leva ao segundo item da ementa citada por Moraes. Um magistrado que ordena a exclusão de perfis – uma das condições impostas pelo ministro para que o X pudesse voltar a funcionar no Brasil – certamente não está a “respeitar o ordenamento jurídico nacional”, visto que tal ordenamento proíbe este tipo de censura e já oferece os meios para combater o uso ilícito das mídias sociais; ou seja, nem sequer há algum tipo de omissão que justificasse a adoção de medidas cautelares tiradas da cartola por um juiz. Tampouco age em respeito ao ordenamento jurídico nacional quem viola princípios básicos como o do juiz natural, por exemplo quando certos inquéritos se transformam em “juízo universal” no qual se lança absolutamente tudo que seja da vontade de seu relator. Também não condiz com o ordenamento jurídico nacional a instituição de “crimes de opinião” e “crimes de cogitação”, embora tenha sido isso o que aconteceu a um grupo de empresários, investigado por conversas privadas a respeito de ideias que jamais nem se tentou concretizar; ou a instituição de “obrigações de não fazer” que não estejam explicitamente previstas na lei, embora tenha sido isso o que aconteceu quando Moraes, além de bloquear o X, proibiu todos os brasileiros de usar VPNs para acessar a rede social, sob pena de multa.
Ainda que mantenha a autoridade legal para ordenar que os demais cumpram as leis do país e as decisões judiciais, um magistrado que ignora essas mesmas leis perde a autoridade moral, tornando-se alguém que não faz o que exige dos outros. Quando este magistrado está em posição tal que suas atitudes não encontram freio ou contrapeso algum, a democracia se vê golpeada de morte, pois o império da lei deixa de vigorar quando o poder é exercido por meio de ordens contra legem, não apenas inconstitucionais ou ilegais, mas também injustas. O episódio envolvendo o X é apenas mais um a demonstrar que é neste estágio que nos encontramos atualmente.
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